Luiz Antonio Costa de Santana

sexta-feira, junho 29, 2007

Direito de ficar

Ainda que regido pela CLT, concursado tem estabilidade

Todo trabalhador contratado por concurso público tem direito à estabilidade, ainda que esteja enquadrado nas regras da CLT. A decisão é da Seção Especializada em Dissídios Individuais 1 do Tribunal Superior do Trabalho.

A SDI-1 rejeitou recurso do município de Araraquara (SP) contra a decisão da 2ª Turma do TST, que havia determinado a reintegração de um motorista contratado pela prefeitura e dispensado sem justa causa. O relator do recurso na SDI-1, ministro Aloysio Corrêa da Veiga, seguiu jurisprudência do TST e reconheceu que os celetistas contratados por concurso público têm direito à estabilidade, prevista no artigo 41 da Constituição Federal.

O empregado foi admitido pela prefeitura de Araraquara em 1989 como podador de árvores. Como ele foi aprovado no concurso público, passou a exercer as funções de motorista. Em 1995, foi dispensado. Por causa disso, ajuizou reclamação trabalhista pedindo sua reintegração, adicionais de horas extras e outras verbas, além do salário correspondente ao período entre a demissão e a reintegração.

A prefeitura alegou que o empregado, sendo celetista, era passível de demissão. Argumentou também que o trabalhador foi contratado como podador de árvores por 180 dias e só virou motorista após a aprovação no concurso público. De acordo com a prefeitura, o empregado aceitou pacificamente o aviso prévio e só 21 meses depois ajuizou o pedido de reintegração. "Ao que parece, pretende o reclamante auferir um ganho fácil", diz a prefeitura.

O juiz da 2ª Vara do Trabalho de Araraquara julgou a ação procedente em parte. Condenou o município a pagar horas extras, mas negou a reintegração por não reconhecer o direito à estabilidade. Para o juiz, a relação jurídica estabelecida entre as partes não era a estatutária. "A Constituição, ao exigir que os entes públicos contratassem os servidores após a aprovação prévia em concurso, não trouxe implícito nessa disposição que estes seriam detentores de estabilidade no emprego, mas fixou somente um pré-requisito para a investidura no emprego." O entendimento foi mantido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas-SP).

O empregado recorreu ao TST. A 2ª Turma concedeu o recurso e condenou o município a reintegrar o motorista e pagar os salários do período de afastamento. A Turma seguiu a jurisprudência do TST (Súmula 390).

A prefeitura apelou à SDI-1. Sustentou que a decisão da Turma violou a Constituição. Disse que os empregados públicos, ao contrário do decidido, não gozam da estabilidade ali prevista. O ministro Aloysio Corrêa da Veiga destacou que o Supremo Tribunal Federal já adotou a tese de que o servidor empregado da administração, contratado após aprovação em concurso público, independentemente de ser optante pelo FGTS, goza da estabilidade prevista no artigo 41 da Constituição. "Beneficia-se do direito de, somente após regular apuração de falta grave que lhe seja imputada, ser dispensado por justa causa", declarou o ministro.

E-RR-63.5846/2000.2

Revista Consultor Jurídico, 29 de junho de 2007

Lição de tolerância

Juiz recomenda bom humor contra ironias de Mainardi

por Maria Fernanda Erdelyi

O colunista Diogo Mainardi se livrou de mais uma na Justiça. Alvo de ação civil pública, foi absolvido da acusação de preconceito contra o povo de Sergipe e de Cuiabá. O Ministério Público Federal em Sergipe pedia a condenação do jornalista, com base em escritos de Mainardi publicados em 2005 na coluna que assina na revista Veja e em afirmações feitas no programa Manhattan Connection, do canal de TV por assinatura GNT.

O juiz Ricardo Mandarino, da 1ª Vara Federal de Sergipe e ex-membro do Conselho Nacional do Ministério Público, entendeu que embora possa ter havido, em um trecho ou outro, manifestações preconceituosas ou desrespeitosas, não causou dano moral a nordestinos ou cuiabanos. "Entre tolerar pequenas ofensas e limitar a liberdade de expressão, prefiro a tolerância em nome da liberdade, mormente quando se verifica que o dano inexistiu", disse Mandarino. A ação do MP também era dirigida à Globosat, Editora Abril e Globo Comunicação e Participações; e pedia a condenação ao pagamento de uma indenização de R$ 200 mil por danos morais causados à coletividade nacional.

Mandarino também recomendou uma dose de bom humor para ler e ouvir as irreverências e ironias do coluista da Veja e faz um paralelo com Paulo Francis, jornalista da Folha de S. Paulo, já morto, um dos inventores do estilo literário-jornalístico que garante o sucesso de Mainardi. "Manifestações preconceituosas contra os nordestinos, eu já ouvi, li, inclusive de formadores de opinião. Paulo Francis, certa feita, no Jornal da Globo, chegou a afirmar que os nordestinos eram uma sub-raça", conta Mandarino em sua sentença. "Continuei a ouvi-lo, afinal ele era bem informado. Quando falava bobagens como essa, eu me divertia."

O procurador Paulo Gustavo Guedes Fontes, que assinou a Ação Civil Pública contra Mainardi, argumentava que o jornalista ofendeu a população de Sergipe na coluna veiculada na edição da revista Veja de 19 de janeiro de 2005. No texto ele falava do então presidente da Petrobras José Eduardo Dutra. "Dutra não tem passado empresarial. Fez carreira como sindicalista da CUT e senador do PT pelo estado de Sergipe. Não sei o que é pior".

As ofensas a Sergipe e aos sergipanos não pararam por aí, na opinião do procurador. No programa Manhattan Connection, veiculado pelo GNT em 9 de março de 2005, onde se comentava sobre o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, o jornalista fez a seguinte observação: "Ele não é pragmático. Ele é oportunista. O episódio do Pará agora é muito claro. Quer dizer, uma semana ele concede a exploração de madeira, na semana seguinte, ele cria a reserva florestal grande como Amazonas, Sergipe, sei lá eu... por essas bandas de onde eles vêm. Isso é oportunismo".

Segundo o procurador, na semana seguinte o jornalista ofendeu a população de Cuiabá: "Seu principal artista é o comediante Liu Arruda. Além de protagonizar a memorável campanha publicitária do Supermercado Trento, Liu Arruda também se tornou conhecido por interpretar personagens como Creonice e Comadre Nhara (...) Não gosto de me vangloriar. Creio, porém, que fui a notícia mais excitante de Cuiabá nos últimos 20 anos". Em outra ocasião Mainardi afirmou que pagaria qualquer coisa para não ter de colocar os pés em Cuiabá.

A defesa de Mainardi contestou a ação alegando a ilegitimidade ativa do Ministério Público por entender que a ação não se enquadra na categoria de interesses difusos e coletivos. Argumentou, ainda, que não havia ilicitude nem conotação discriminatória nas afirmações do jornalista. Chamou atenção para o fato de que o jornalista é conhecido por manifestar seu pensamento de forma ácida, contundente, utilizando, por vezes, dos recursos da ironia e da jocosidade para fazer suas críticas, o que constitui uma garantia constitucional.

O juiz reconhece que conquanto possa ter havido, em um trecho ou outro, manifestações preconceituosas, desrespeitosas até, nada disso causou qualquer dano moral aos sergipanos, nordestinos ou cuiabanos.

"De minha parte, enquanto me agradar, continuarei assistindo ao Manhattan Connection e lendo as crônicas do Sr. Diogo Mainardi e, sempre que me for dado, assegurar que ele possa dizer o que pensa. É o que importa. Aproveito e convido-o, se ainda não o fez, para visitar Sergipe. Não se arrependerá", conclui Mandarino.

Leia a íntegra da sentença

PROCESSO N° 2007.85.00.000415-6

CLASSE 1 — AÇÃO CIVIL PÚBLICA

SENTENÇA TIPO A

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RÉU(S): DIOGO BRISO MAINARDI, GLOBOSAT PROGRAMADORA LTDA, EDITORA ABRIL, GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES S/A.

SENTENÇA

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OFENSAS ESCRITAS POR JORNALISTA CONTRA OS NORDESTINOS, SERGIPANOS E CUIABANOS. REGRA DE TOLERÂNCIA. DIREITO À LIVRE MANIFESTAÇÃO. AUSÊNCIA DE DANO.

1. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO TALVEZ SEJA O MAIOR FUNDAMENTO DA DEMOCRACIA. ESTA, POR SUA VEZ, É MUITO TRABALHOSA PARA EXERCITÁ-LA, MAS VALE A PENA.

2. ENTRE TOLERAR PEQUENAS OFENSAS E LIMITAR A LIBERDADE DE EXPRESSÃO, PREFIRO A TOLERÂNCIA EM NOME DA LIBERDADE, MORMENTE QUANDO SE VERIFICA QUE O DANO INEXISTIU.

3. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

1. RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL propõe, em face do Sr. DIOGO BRISO MAINARDI, GLOBOSAT PROGRAMADORA LTDA., EDITORA ABRIL e GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES S/A, todos qualificados na inicial, a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, objetivando a condenação dos requeridos em uma indenização de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), por danos morais causados à coletividade nacional, a ser revertida ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos.

Alega que, através de uma mensagem eletrônica, foi procurado por um cidadão baiano, que indica, indignado com algumas considerações feitas pelo jornalista Diogo Mainardi no programa "Manhattan Connection" acerca da gente nordestina, afirmando que "Paulo Francis, reconhecido antinordestino foi substituído por Mainardi..." Transcreve, do trecho degravado, a seguinte fala sobre o Presidente Luís Inácio Lula da Silva: "Ele não é pragmático, ele é oportunista. O episódio do Pará agora é muito claro. Quer dizer, uma semana ele concede a exploração de madeira, na semana seguinte ele cria uma reserva florestal grande como Alagoas, Sergipe, sei lá eu...por essas bandas de onde eles vêm. Isso é oportunismo".

Invoca, mais, a matéria da edição da Revista Veja, de 19.01.2005, quando o jornalista, ao se referir ao Presidente da PETROBRÁS, José Eduardo Dutra, tropeçou no seu preconceito, asseverando: "Dutra não tem passado empresarial. Fez carreira como sindicalista da CUT e senador do PT pelo estado de Sergipe. Não sei o que é pior(...)".

Alega, ainda, que, na semana seguinte, o Sr. Diogo Mainardi ofendeu a população de Cuiabá/MT, ao afirmar: "Seu principal artista é o comediante Liu Arruda. Além de protagonizar a memorável campanha publicitária do Supermercado Trento, Liu Arruda também se tornou conhecido por interpretar personagens como Creonice e Comadre Nhara (...)". E assim encerra a sua cônica: "Não gosto de me vangloriar. Creio, porém, que fui a notícia mais excitante de Cuiabá nos últimos 20 anos".

Em rodapé de página, o Procurador da República transcreve trecho da crônica em que, na sua visão, o jornalista é profundamente ofensivo, ao afirmar: "O Diário de Cuiabá fez uma pesquisa com a população local sobre os aspectos mais representativos da cidade. Seu prato típico é a mojica de pintado. Sua música tradicional é o rasqueado. Seu edifício histórico mais relevante é o Mercado do Peixe. Sua maior figura esportiva é Jorilda Sabino, que chegou em segundo lugar na corrida de São Silvestre, em 1984. Sua grande celebridade é Jejé de Oya, um colunista social "negro, pobre, homossexual"...

Pugna pelo cabimento da ação civil pública, pela legitimidade do Ministério Público e pela competência da Justiça Federal.

No mérito, entende que a ação situa-se nos limites da liberdade de expressão, confrontados com outros princípios constitucionais, notadamente o da isonomia e vedação dos preceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º -IV, CF).

Tece considerações sobre os limites da liberdade de expressão, previsto no art. 5º - inciso IV em cotejo com o direito de resposta e à indenização por dano moral, material e à imagem, estabelecido no inciso V. Junta um laudo antropológico acerca da idéia de preconceito e pede a procedência do feito.

Nas fls. 64, o Autor requer a juntada de alguns documentos, consistentes em artigos do escritor e comentários de outros articulistas acerca do jornalista Diogo Mainardi.

Nas fls. 98 e seguintes, a Editora Abril e Diogo Mainardi, depois de citados, contestam o feito, alegando preliminarmente ilegitimidade ativa do Ministério Público, por entenderem que a ação não se enquadra na categoria de interesses difusos e coletivos e, por isso mesmo, também inadequada a via eleita.

No mérito, entendem ausente qualquer ilicitude nas afirmações do requerido, não enxergando conotação discriminatória que se atribui a elas.

Tentam demonstrar suas afirmações, chamando a atenção para o fato de que o jornalista Diogo Mainardi é conhecido por exercer sua manifestação de pensamento de forma ácida, contundente, utilizando, por vezes, dos recursos da ironia e da jocosidade para fazer suas críticas, o que constitui uma garantia constitucional.

Comenta sobre os trechos pinçados pelo Autor, para demonstrar ausência de afirmações discriminatórias por parte do requerido, inclusive quando critica seus próprios colegas de profissão.

Trazem à baila assertivas contundentemente negativas desferida pelo jornalista, também na Revista Veja, contra as duas maiores cidades do País, São Paulo e Rio de Janeiro, ele próprio residente no Rio de Janeiro e paulista de nascimento, como forma de demonstrar ausência de preconceito e discriminação.

Contestam a validade do laudo antropológico, tecem longas considerações sobre a liberdade de pensamento e pedem que, se ultrapassadas as preliminares, seja o pedido julgado improcedente.

GLOBOSAT Programadora Ltda. e Globo Comunicação e Participação S/A também contestam o pedido, nas fls 169 e seguintes, levantando as mesmas preliminares de ilegitimidade do Ministério Público e mais a de ilegitimidade passiva da segunda, posto não possuir qualquer responsabilidade pela produção e/ou veiculação do programa "Manhattan Connection", sendo empresa distinta da Globosat, que é a verdadeira detentora dos direitos de veiculação do programa.

Ainda em preliminar, argúem a incompetência do juízo, entendendo que deveria ter sido proposta no foro do local onde ocorreu o dano.

No mérito, repetem, com outro texto, os mesmos fundamentos expostos pelos primeiros contestantes.

É o relatório.

Decido.

2. FUNDAMENTAÇÃO

Ao examinar os autos, verifiquei que o Ministério Público juntou documentos posteriormente à inicial e os requeridos juntaram documentos com a contestação. Nenhum dos documentos anexados, no entanto, seria capaz de alterar o resultado da demanda, seja porque são documentos de conhecimento público, artigos, comentários, etc., do jornalista Diogo Mainardi – a maioria deles eu já conhecia – seja porque a questão de fato está suficientemente demonstrada, sem controvérsia. A decisão de mérito decorrerá da análise das provas, onde será necessária uma grande dose de subjetivismo responsável para que o juiz possa firmar o seu convencimento de forma justa, imparcial, equilibrada.

Diante dessas observações, deixo de dar ciência às partes dos documentos apresentados porque, com ou sem ela, o resultado do julgamento do mérito da demanda será o mesmo. A ciência às partes aqui não teria utilidade prática alguma, senão procrastinar o andamento do feito.

Passo ao exame das preliminares.

Primeiramente, rejeito a de ilegitimidade de parte ativa e, pelos mesmos fundamentos, a inadequação da via eleita. É que, se procedente o pedido, haverá um interesse difuso, consistente na reparação, por parte dos requeridos, pelas manifestações supostamente discriminatórias ou preconceituosas contra os cidadãos, nordestinos, especialmente os sergipanos e os cuiabanos.

Ainda de forma condicionada à procedência do pedido, haverá interesse da União por colocar em risco a harmonia entre os nacionais de diversas origens, criando uma cultura de desrespeito num mesmo estado soberano, que representa uma nação composta de valores culturais e regionais diversos.

Esses mesmos fundamentos servem para afastar a idéia de incompetência relativa do juízo. Afinal, se as ofensas existiram, seria até mesmo difícil estabelecer o local do dano. Penso que a ação poderia ter sido proposta em qualquer sede de foro federal, em qualquer lugar do território nacional, posto que não interessa aos brasileiros o estímulo a preconceitos que levam à divisão da sociedade.

Rejeito, portanto, as preliminares analisadas.

Acolho apenas a preliminar de ilegitimidade passiva da Globo Comunicação e Participação S/A, por se tratar de pessoa jurídica distinta e nada ter a ver com o programa Manhattan Connection, em que pese pertencente ao mesmo grupo de empresas.

Afasto-a da relação processual.

No mérito, a matéria há que ser examinada com extrema cautela e assim o farei para demonstrar que não vejo como julgar o pedido procedente, sem deixar de reconhecer, no entanto, que a propositura da presente demanda teve o mérito de trazer à discussão, ao debate, a questão do preconceito e da discriminação, que sempre existiu das regiões mais desenvolvidas em face das menos desenvolvidas.

Isso, felizmente, está ficando para trás. Em passado não muito distante, eram comuns piadas de mau gosto contra os negros, nordestinos, gaúchos, etc. Cada vez mais, no entanto, verifica-se uma certa intolerância relativamente a certos tipos de manifestações preconceituosas, o que é altamente positivo para o conforto emocional das mais variadas comunidades que compõem a nação brasileira.

Eu mesmo já passei por algumas experiências, que seriam extremamente desagradáveis, se não as tivesse levado com uma certa dose de bom humor. Certa feita, passeando pela nossa mais bela das capitais, o Rio de Janeiro, ao tomar um táxi, um motorista bastante simpático começou a iniciar uma prosa sobre a questão da violência na cidade para, ao final, sentenciar que a violência existia por conta dos filhos dos baianos, cujos pais foram procurar a vida num centro maior e não souberam educar os seus filhos. Pensei comigo, logo eu, um soteropolitano cheio de orgulho ter que ouvir isso. Sem lhe dizer que provinha das bandas da Bahia, tentei demonstrar até o limite da corrida, que ele estava equivocado. Não sei se consegui.

Manifestações preconceituosas contra os nordestinos, eu já ouvi, li, inclusive de formadores de opinião. Paulo Francis, certa feita, no Jornal da Globo, chegou a afirmar que os nordestinos eram uma sub-raça. Continuei ao ouvi-lo, afinal ele era bem informado. Quando falava bobagens como essa, eu me divertia. Hoje, a lembrança que tenho dele é caricatural, talvez, sem querer ser redundante, por causa das caretas que ele fazia para dar um ar de intelectual excêntrico.

Os preconceitos contra os nordestinos sempre foram muito fortes, não só nas manifestações explícitas, como nas entrelinhas. Ibrahim Sued, em sua coluna diária, no Jornal "O Globo" costumava chamar o Presidente Collor de, "O Demolidor" e fazia questão de dizer que o mesmo era carioca, porque, de fato, nascera no Rio de Janeiro. O codinome, embora inspirado na idéia de que o Presidente Collor fora eleito para modernizar o País, inserindo-o no mundo globalizado, é uma criação típica dos bajuladores. Quando o então Presidente caiu em desgraça, pelos motivos que todos conhecemos, a imprensa, em sua maioria, fez questão de afirmar que o mesmo era alagoano, cunhando um termo com conotação pejorativa "A República das Alagoas" . Esqueceram dos seus filhos ilustres. Entre os mais notáveis Zumbi dos Palmares, Graciliano Ramos e Pontes de Miranda.

Certa feita, Carlos Heitor Cony, cujas crônicas leio desde a minha adolescência, referiu-se ao Senador Antônio Carlos Magalhães como sendo o soba da Bahia. Quis ofender o Senador, mas acabou ofendendo os baianos. Soba, na definição de Aurélio, significa "Chefe ou régulo de tribo africana: "quando o povo de Tchipinda levantou uma paliçada à volta da senzala...., o soba fez a sua entrada solene no terreiro" . (Em Novo Dicionário Aurélio – 1ª edição)

Esse tipo de visão deformada jamais se afasta dos nordestinos na visão preconceituosa de setores da mídia. A imprensa, sempre que algum político do Nordeste não se comporta com o decoro indispensável, busca atribuir a essa circunstância o fato de ser nordestino, daí porque os denomina de "coronéis". Entretanto, sem entrar no mérito, se a alternância foi positiva ou não, nas últimas eleições, em Sergipe e na Bahia, houve mudança de comando político. A Revista Veja, numa reportagem extremamente infeliz, ridícula, preconceituosa, identificou os governantes eleitos como os novos coronéis.

Parece não ter jeito. Quando os governantes saem das lideranças tradicionais, são os velhos coronéis. Quando saem de novas lideranças, são novos coronéis. Há sempre um preconceito, há sempre um comentário pejorativo. Veja-se o exemplo de Pernambuco. Miguel Arraes, em 1962, rompeu com as velhas oligarquias, derrotou o pessoal ligado ao que tinha como mais atrasado – os usineiros – entretanto, quando o peso da idade caiu sobre os seus ombros, recebeu a pecha de velho coronel.

A pior de todas as manifestações preconceituosas eu li, se não me falha a memória, na Folha de São Paulo. Tenho uma certa lembrança do nome da jornalista, mas não irei nominá-la, porque não quero ser leviano. Mas eu li, dessa jornalista, por ocasião da morte da Sra. Elma Farias, um artigo elogioso à figura da mulher, da esposa solidária, que tudo suportou ao lado de PC Farias, um homem execrado pela opinião pública. O artigo era muito bonito, emotivo até, não fosse o final que concluía mais ou menos assim: "Não dá para entender porquê uma mulher se apaixona por homem baixo, careca, barrigudo, feio, corrupto e nordestino" .

Os preconceitos existem até de forma menos danosa. Muitas vezes, o preconceituoso é vítima do seu próprio preconceito. Certa feita, comentando com um colega Juiz, acerca do livro "Lanterna na Popa", de Roberto Campos, ouvi dele que jamais leria qualquer coisa do autor. Disse-lhe à época: "Pior para você. Roberto Campos é um dos maiores pensadores da economia no Brasil. Você está deixando de aprender muita coisa". Naturalmente que se tratava de um preconceito incutido pela esquerda nervosa da época da ditadura militar, quando surgiu a versão de que Roberto Campos - Bob Fields - por ser liberal em matéria econômica, defendia os interesses do imperialismo americano.

Saí, aparentemente, do objeto da ação, para ilustrar, com exemplos, alguns históricos, outros vivenciados pessoalmente, numa tentativa de demonstrar a razoabilidade de toda a discussão, o sentido da demanda, a sensibilidade do Procurador da República Paulo Guedes em trazer ao debate, um tema da maior importância para os brasileiros vítimas de preconceito.

Dessa forma, se, por um lado, identifico uma ponta de preconceito do requerido em algumas das suas manifestações, identifico também, por outro, que o seu estilo literário é extremamente ácido, inteligente e assim o faz basicamente quando comenta sobre os políticos, especialmente os do PT, os que integram o atual governo e quando comenta a postura de colegas seus que aplaudem o governo. Há uma tênue linha entre uma postura e outra.

Confesso até que aprecio os artigos do Sr. Diogo Mainardi. Ele tem o mérito de não integrar o grupo de jornalistas sempre deslumbrados com o governo do momento. Ele não compõe a "unanimidade burra" a que se referia Nelson Rodrigues. Isso não significa dizer que concorde com tudo o que ele escreve e que, por conta disso, estaria julgando o pedido improcedente. Assim o faço porque entendo que, conquanto possa ter havido, em um trecho ou outro, manifestações preconceituosas, desrespeitosas até, nada disso causou qualquer dano moral aos sergipanos, nordestinos ou cuiabanos. Vejamos.

Quando o escritor afirmou, referindo-se ao Presidente Lula, no programa "Manhattan Connection que "Ele não é pragmático, ele é oportunista. O episódio do Pará agora é muito claro. Quer dizer, uma semana ele concede a exploração de madeira, na semana seguinte ele cria uma reserva florestal grande como Alagoas, Sergipe, sei lá eu...por essas bandas de onde eles vêm. Isso é oportunismo", evidentemente que a expressão "por essas bandas de onde eles vêm" pode ter uma conotação pejorativa, preconceituosa, embora a expressão seja muito comum na literatura e na linguagem coloquial. Mas não se trata, evidentemente, de um termo capaz de causar dano moral a nenhuma comunidade, muito menos à comunidade nordestina.

De outro lado, quando o jornalista afirmou que "Dutra não tem passado empresarial. Fez carreira como sindicalista da CUT e senador do PT pelo estado de Sergipe. Não sei o que é pior(...)", ele não quis ofender o estado de Sergipe, tampouco os sergipanos. A sua ofensa foi dirigida tão somente ao então Senador Eduardo Dutra e ao Partido dos Trabalhadores. É razoável aceitar a explicação de que a expressão estado de Sergipe foi um mero complemento da circunstância fática do Sr. Eduardo Dutra ter sido Senador pelo estado de Sergipe. Nada mais. A ofensa foi ao PT, frise-se mais uma vez.

É certo que o jornalista, ao comentar, na revista Veja, sobre esta ação, pode ter sido irônico, ao mencionar o pujante estado de Sergipe. Mas isso é problema dele. Aí, a vítima do preconceito, se houver, será somente ele, porque de fato, Sergipe é um estado pujante. A sua pujança evidencia-se pelo senso de organização e pela altivez do seu povo. Já tive oportunidade de dizer e repito.

Sergipe é um exemplo, para o país, de civilidade política, posto que os poderes funcionam de forma independente e existe alternância. Na condição de magistrado, jamais tive dificuldade de fazer cumprir uma decisão judicial frente às autoridades locais. Isso é o reflexo de uma sociedade civilizada.

Nada disso é recente. Lendo, certa feita, sobre a História do Poder Judiciário estadual em Sergipe, verifiquei que, desde a sua criação, houve uma cultura de respeito do Poder Executivo – sempre historicamente o mais desobediente, o mais autoritário em face dos demais – com relação ao Poder Judiciário.

Quando menciono acima que o jornalista Diogo Mainardi pode ter sido irônico é porque acredito verdadeiramente que é uma mera possibilidade. Pode ter sido e pode não ter sido. Afirmo porque, em outro trecho, também comentando sobre esta ação, o requerido diz que não entende bem da geografia nordestina. O fato de tratar-se o escritor de uma pessoa altamente intelectualizada, torna-se difícil acreditar numa afirmativa dessa. Tenho certeza, no entanto, que está sendo sincero.

Certa feita, viajando pelo sul da Espanha, em companhia de colegas magistrados e membros do Ministério Público, diante do calor infernal que fazia à época, ouvi, de um Promotor de Justiça, a seguinte "pérola": "Para você este calor não diz nada, afinal vivendo no sertão brabo de Salvador, já deve estar acostumado!". Eu lhe respondi: "De fato, Salvador é uma cidade de clima quente, mas não fica no sertão. Você precisa estudar mais geografia. Salvador fica no litoral. É uma península situada bem ao leste do país, entre o Oceano Atlântico e a Baia de Todos os Santos". Confesso que me arrependi pela extensão da fala. Pensei comigo mesmo. Será que, depois de tanto tempo, ele ainda lembra o que vem a ser uma península?!

A minha mulher também teve uma experiência parecida nesta mesma viagem. Desta feita foi com um Juiz. Era época de eleição municipal no Brasil e a conversa se desenvolvia em torno da política paulistana e soteropolitana. Em determinado momento, o interlocutor perguntou. "E em Fortaleza, quem tem chance de vitória?" A minha mulher, depois de fazer a sua avaliação pessoal, devolveu-lhe a pergunta. "E em Porto Alegre, quem tem chance de vitória? Ao que o interlocutor respondeu: "Mas eu não sou de Porto Alegre, eu sou de São Paulo". A minha mulher então lhe disse: "Eu sei, mas é que Porto Alegre é mais perto de São Paulo do que Fortaleza é de Salvador".

Há muitos anos, quando o meu conhecimento pessoal do Brasil ia até o Rio Grande do Norte, fui apresentado a uma Senhora, classe média alta, curso superior, em Vitória. Ao lhe informar que eu era baiano, ela me disse: "Eu não conheço o norte". Respondi imediatamente. "Eu também não, só conheço até Natal"

Portanto, se o Sr. Diogo Mainardi disse que não conhece a geografia nordestina, é porque, de fato, ele não conhece. Não há nenhum preconceito nisso capaz de causar dano. O preconceito, se houve, fica por conta do desinteresse, do desprezo de quem se julga superior intelectualmente. O prejuízo é, apenas, do dono do preconceito. Não estou dizendo, como isso, que seja o caso dele. Ele é quem deve saber.

Nesse particular, o preconceito só serve para embotar as nossas inteligências. Eu mesmo identifico uma situação em que fui vítima do meu próprio preconceito. Em momento mais recente, quando o meu conhecimento pessoal do Brasil já chegava ao Ceará, cheguei a afirmar que, para mim, o País acabava ali e que não me interessava mais conhecer os estados do norte. Depois, verifiquei o quanto fui tolo. Ao me ser dada a oportunidade de conhecer São Luis e Belém, encantei-me com a beleza e a riqueza cultural das duas cidades e hoje, um dos meus maiores sonhos de viagem é conhecer o resto do norte do Brasil.

Quanto aos cuiabanos, identifico, por parte do requerido, pelo menos em um trecho, um preconceito muito forte, não contra os cuiabanos em si mesmo, mas contra os homossexuais, negros e pobres, quando afirmou que "Sua grande celebridade é Jejé de Oya, um colunista social "negro, pobre, homossexual"... , mas nada que justifique a condenação de uma indenização, porque o dano não houve.

O articulista, às vezes, é ambíguo quando afirmou que "Não gosto de me vangloriar. Creio, porém, que fui a notícia mais excitante de Cuiabá nos últimos 20 anos" . O que parece desprezo, não deixa de ser uma deferência, posto que demonstra vangloriar-se de estar às turras com o povo cuiabano. Na verdade, os cuiabanos parecem ser, realmente, muito importantes para o jornalista Diogo Mainardi.

Quanto às afirmações que fez sobre ser o Rio de Janeiro e São Paulo duas "porcarias" e o povo carioca "inconsistente", de fato revela que se trata de estilo próprio dos seus escritos, ácido, duro, contundente, sendo razoável crer, por isso mesmo, que não tenha pretendido ofender os sergipanos, em que pese haver demonstrado, em alguns momentos, uma ponta de preconceito ainda que inofensivo.

De toda sorte, entre a liberdade de expressão e pequenas ofensas, fico com a primeira, base maior da democracia, que dá muito trabalho para administrar, mas vale a pena.

Para encerrar, uma História com "H". Há pouco mais de quarenta e três anos, havia um governador, pequeno na estatura, como o estado que governava, mas um gigante no caráter, que preferiu sacrificar a sua carreira política, perder o mandato e passar algum tempo na cadeia, a ter que aderir àqueles que destituíram o Presidente da República constitucionalmente eleito. Seu nome? João de Seixas Dória. Quem não souber o estado que ele governava, fica como dever de casa a pesquisa. Sugiro que dê uma voltinha no Google.

De minha parte, enquanto me agradar, continuarei assistindo ao Manhattan Connection e lendo as crônicas do Sr. Diogo Mainardi e, sempre que me for dado, assegurar que ele possa dizer o que pensa. É o que importa. Aproveito e convido-o, se ainda não o fez, para visitar Sergipe. Não se arrependerá.

3. DISPOSITIVO

Com esses fundamentos:

a) excluo a Globo Comunicação e Participações S/A do pólo passivo da demanda;

b) em relação aos demais Réus, julgo IMPROCEDENTE o pedido, nos termos do art. 269, I, do Código de Processo Civil.

Sem custas e honorários, nos termos do art. 18 da Lei da Ação Civil Pública.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

Aracaju, 27 de junho de 2007.

RICARDO CÉSAR MANDARINO BARRETTO

Juiz Federal da 1ª Vara

Revista Consultor Jurídico, 28 de junho de 2007

segunda-feira, junho 25, 2007

A diretriz da participação séria do devedor na nova execução civil:

balizas para a aplicação do art. 620 do CPC à penhora on line

Texto extraído do Jus Navigandi

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10047

Marco Paulo Denucci Di Spirito

Assessor jurídico do Conselho Regional de Economia da 10ª Região


 

I - Gradação entre os meios de penhora

A Lei 11.382/06 introduziu o art. 655-A no Código de Processo Civil, regulando a penhora on line.

O novo mecanismo de efetivação da execução tem suscitado dúvidas sobre a existência de gradação entre os meios de penhora disponíveis no CPC. A questão está em saber se a penhora on line deve ser encarada como último meio de penhora ou como um dentre tantos meios hoje disponíveis.

Existem os que defendem certo regime de gradação à penhora on line, com base na regra da execução menos onerosa ao devedor (art. 620, CPCdir>.

Impende, portanto, analisar a existência da alegada gradação, bem como examinar o papel do art. 620 do CPC na penhora on line.


 

II - Demonstrações concretas de que a Lei 11.382/06 afastou qualquer gradação entre os meios de penhora

Ab initio, considere-se que não há a regra de precedência de penhora por oficial de justiça na qualidade de óbice à penhora on line. Atualmente, o devedor é citado para pagar, nos termos do art. 652 do CPC, sob pena de, não o fazendo, estar submetido aos meios executivos dispostos na lei. Excluiu-se o direito deste nomear bens a penhora.

É inócuo argumentar contrariamente com fundamento num suposto direito do devedor de ter a penhora realizada por oficial de justiça.

Quando alguns bens são localizados no domicílio do devedor, raras vezes satisfazem à ordem de preferência legal do art. 655 do CPC. Ademais, a experiência de receber um oficial de justiça em casa é das piores, daí não se compreender que a visita prévia do merinho asseguraria o disposto no art. 620 do CPC.

A prerrogativa do credor fixada no art. 652, § 2º do CPC demonstra que a visita do oficial de justiça à casa do devedor não é medida imprescindível, pois este último é citado tão-somente para pagar, e não para nomear bens. O juiz pode providenciar a penhora, nestes casos, pelos meios eletrônicos.

O critério de precedência de busca por outros bens penhoráveis, em detrimento da penhora on line, encontra-se realmente prejudicado pela Lei 11.382/06, o que se prova cientificamente também pela poderosa combinação do art. 652, § 2º com o art. 659, § 6º, ambos do CPC. Como resultado, tem-se a regra: indicados na inicial da execução bens a serem penhorados, o julgador poderá providenciar a imediata penhora por meios eletrônicos. Caso o credor aponte na inicial da execução uma conta corrente do devedor, os mesmos arts. 652, § 2º e 659, § 6º determinam ao julgador que priorize a penhora sobre o bem indicado, e a realize pela facilitada via eletrônica. Não há sequer a necessidade de acionar o oficial de justiça nessas hipóteses. O esquema abaixo ilustra a nova sistemática:



 

III - O art. 620 do CPC e a relativização da ordem de penhora do art. 655 do CPC

Argumenta-se que o art. 620 do CPC impõe uma relativização da ordem disposta no art. 655 do CPC, para que a execução prossiga da maneira menos onerosa ao devedor.

De fato, a ordem de penhora é relativa. Por vezes deve ser alterada em benefício do próprio credor, quando certo bem arrolado em ordem de preferência não possuir liquidez, de acordo com circunstâncias do mercado.

Os doutrinadores contrários à penhora on line fazem questão de sempre objetar com o argumento de que a ordem posta no art. 655 do CPC é relativa. Como visto, não há dúvidas sobre a possibilidade da relativização. Todavia, repetir reiteradamente essa realidade não resolve a questão. Encaramos com muitas reservas aqueles que insistem na relatividade do art. 655 sem, contudo, apresentar critérios que permitam identificar as hipóteses excepcionais. É necessário pensar, doutrinariamente, balizas que permitam traçar a relativização possível do art. 655 do CPC, principalmente em face do art. 620 do mesmo Codex.

Um enfoque detido do novo sistema da execução civil autoriza encontrar uma solução no sentido de que somente se inverte a ordem do art. 655 do CPC, em favor do devedor, quando presentes alguns requisitos indeclináveis.


 

IV - A diretriz da participação séria do devedor

A inversão da ordem de penhora posta no art. 655 do CPC não pode ser compreendida desvinculadamente da diretriz também estabelecida no art. 655-A, §2º do CPC: "(...) compete ao executado comprovar que as quantias depositadas em conta corrente referem-se à hipótese do inciso IV do caput do art. 649 desta Lei ou que estão revestidas de outra forma de impenhorabilidade".

Certo que o art. 655-A do CPC trata sobre a penhora em conta corrente, mas seu parágrafo segundo aduz diretriz que foi estabelecida como regra para toda a execução. Diretriz essa, aliás, corroborada pelo art. 615-A e por outros dispositivos do CPC, como se verá adiante.

A diretriz a que se alude radica, em suma, na regra atualmente vigorante no sentido de que o ônus de comprovação de eventuais prejuízos ou desproporções recai sobre o executado, os quais não podem ser presumidos pelo julgador.

Insta notar que esse é o perfil delineado à nova execução, o que se constata inclusive na regra do art. 615-A do CPC. Nos termos deste dispositivo, é dado ao credor averbar certidão comprobatória da execução junto a entidades mantenedoras de registros ou controles sobre bens penhoráveis. Das averbações, que podem ser realizadas universalmente e mantidas até a individualização da penhora (615-A, § 2º), deflui a presunção de fraude à execução, na hipótese de alienação ou oneração dos bens glosados (art. 615-A, §3º).

Ora, eis aqui um ônus que a lei fez recair sobre o devedor. Afinal, a configuração da fraude à execução, que decorre do aludido registro, inverte o ônus de provar a existência de bens livres e desembaraçados que possuem precedência na ordem figurada no art. 655 do CPC, ônus esse que agora recai sobre o devedor. Caso o executado queira afastar as averbações realizadas nos termos do art. 615-A do CPC, deverá comprovar que existem bens outros penhoráveis além dos que foram averbados. Neste sentido, aponta Humberto Theodoro Júnior:

"Naturalmente, essa presunção legal de fraude de execução, antes de aperfeiçoada a penhora, não é absoluta e não opera quando o executado continue a dispor de bens para normalmente garantir o juízo executivo. Mas, se a execução ficar desguarnecida, a fraude é legalmente presumida (...)" [01]

A demonstrada diretriz também se encontra em outros dispositivos. É o caso do art. 600, IV do CPC, que qualifica como ato atentatório à dignidade da Justiça o fato de o devedor não indicar quais são e onde se encontram seus bens sujeitos à penhora, quando instado para tanto. A ordem representa, inegavelmente, mais um considerável ônus a ser arcado pelo devedor [02], ponto esse que não passou despercebido de Humberto Theodoro Júnior:

"Não se pode mais condicionar a sanção à conduta comissiva e intencional de obstruir a penhora por meio de ocultação de bens exeqüíveis. Bastará não cumprir o preceito judicial para incorrer na sanção legal." [03]

Igualmente, o art. 668 do CPC condiciona expressamente a regra da execução menos onerosa ao devedor à necessária preocupação com a tutela do crédito do exeqüente. Assim, o dispositivo indica que se o devedor quiser beneficiar-se da execução que seja a menos onerosa possível, deverá colaborar, observando respeito ao direito de crédito do exeqüente, bem como munindo o juízo de todos os dados do bem oferecido em substituição, conforme o rol previsto nos incisos do parágrafo único do mesmo artigo. Cuida-se de outro ônus que a lei entendeu por bem atribuir ao devedor, como bem apontado por Humberto Theodoro Júnior: "toca-lhe, todavia, o ônus de cumprir fielmente as exigências do art. 668, parág. único, caso pretenda substituir a penhora promovida pelo exeqüente." [04]

Veja-se a síntese da diretriz da participação séria do devedor no esquema abaixo:


Para concluir, com base na nova sistemática estabelecida pela Lei 11.382/06, o requisito necessário para realizar-se a excepcional inversão da ordem de penhora fixada no art. 655 do CPC é o da participação séria do devedor, no sentido de comprovar eventuais prejuízos ou desproporções que venham lhe desfavorecer.

O insigne processualista Humberto Theodoro Júnior atentou para essa diretriz, no enfoque que denominou de "aspecto cooperativo" [05] da nova execução. Acrescente-se, apenas, que se deve pensar em colaboração desde que consoante os novos ônus estabelecidos ao devedor, em verdadeira alteração do sistema anterior:

"Um sistema tão benevolente assim com devedores que dirigem sua atividade não apenas contra o interesse da parte credora, mas principalmente contra o próprio interesse do Estado-juiz em satisfazer para tutelar, merecia, sem dúvida, alguma alteração!" [06]


 

V - A diretriz da participação séria do devedor e os limites à atuação do juiz

A diretriz da participação séria do devedor impõe limites ao julgador. Dela decorre a proibição de serem realizadas cortesias com o direito alheio, retardando as medidas que a lei disponibiliza para a efetivação do crédito.

Vale ressaltar que existem inúmeras oportunidades para o devedor defender os seus direitos. São variados, outrossim, os institutos de defesa do devedor, notadamente (i) as exceções que se ancoram nos vícios e irregularidades do título executivo; (ii) as hipóteses de impenhorabilidade.

Em razão disso se afirma, com muita tranqüilidade, que não cabe confundir dois institutos jurídicos da execução bem definidos e, portanto, distintos: o da impenhorabilidade e o da execução menos gravosa para o devedor. De maneira que o julgador não pode transformar o art. 620 do CPC em freio aos meios de penhora, sob pena de instaurar, ainda que indiretamente, verdadeira hipótese de impenhorabilidade que não está na lei. Esse argumento não é retórico, e constata-se diariamente nos processos nos quais o magistrado interrompe a execução, denegando ao credor meios eficazes de penhora, ao fundamento de que não se esgotaram as formas, supostamente "ordinárias", de localização dos bens do devedor. Como em grande parte é quase impossível ao exeqüente providenciar essa exigência caprichosa, mormente em se considerando os custos de certidões a serem obtidas junto às Serventias Cartoriais, na prática o processo resta suspenso até a consumação da prescrição. A medida do julgador, em última análise, acaba criando outra hipótese de impenhorabilidade, o que não coaduna com o ordenamento. Assim, a reforma operada pela Lei 11.382/06 veio em boa hora, pois condiciona a aplicação do art. 620 do CPC à participação séria do devedor no processo, afastando-se os exageros que indiretamente geravam hipóteses supralegais de impenhorabilidade.

O que agora não se admite é incoerência, de sorte que daqui em diante o executado não mais assistirá a execução "de camarote", comodamente reclinado em assento confortável. No sistema anterior o credor era forçado a vivenciar um estranho jogo de "cabra-cega", enquanto o devedor, "de olhos desvendados", aproveitava-se da situação.

É a óbvia constatação de que ninguém tem o direito de esconder bens, ou de dispor de bens enquanto mantém dívidas com outrem. Soa até irônico ter que sustentar, com tanta ênfase, que ninguém tem o direito de escamotear seus bens sob o pretexto de que o credor não conseguiu localizar outros penhoráveis. No tocante à penhora on line, conclui Marinoni que, a prevalecer tal pensamento, "todos teriam o direito de esconder da justiça as suas contas correntes e aplicações financeiras!!" [07]

Com vistas a expurgar de vez a conhecida chicana que tomava espaço na execução civil, os institutos de proteção dos direitos do devedor não podem ser lidos ao desamparo da necessária contribuição do executado, não se permitindo ao julgador prolongar, indefinidamente, o processo para tutelar quem não encara com seriedade os serviços do Judiciário.

Isso basta para demonstrar que somente se inverte a ordem estabelecida no art. 655 do CPC, em favor do devedor, quando este apresenta ao Juízo outros bens penhoráveis que se encontram livres, desembaraçados e que possuem liquidez. Caso contrário, seria conceder moratória a quem definitivamente não quer pagar a dívida. Anote-se que o Julgador deverá realizar uma detida apreciação do bem oferecido pelo devedor com vistas a alterar a ordem legal do art. 655 do CPC, de maneira a afastar os apelidados "elefantes brancos", bens sem nenhuma liquidez e que dependeriam de largo período de tempo para serem vendidos, ou que talvez nunca seriam arrematados.

Assim, a ratio instaurada pela Lei 11.382/06 é a de disponibilizar ao julgador todos os meios de penhora eficazes após o transcurso do prazo para o pagamento.

O art. 620 do CPC não se enfoca com paternalismo, mas no contexto da realização do direito do credor e na observância dos institutos protetivos do devedor que resolve contribuir por meio de participação séria no processo. A Lei 11.382/06 veio para eliminar o "(...) pré-conceito de que o executado é sistematicamente o litigante fragilizado, graças a inúmeras concessões até então consagradas em seu favor." [08]

Os Tribunais não descuram deste equacionamento imprescindível para a aplicação do art. 620 do CPC, atentando para a presença, além do apresentado requisito da participação séria do devedor, da diretriz segundo a qual a execução tem como meta a satisfação do crédito:

"PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO. SUBSTITUIÇÃO DA PENHORA.

A execução deve ser feita pelo modo menos gravoso para o devedor (CPC, art. 620), mas o resguardo dos interesses deste não pode ir ao ponto de impedir a execução. Hipótese em que a penhora, originariamente incidente sobre um precatório, de difícil e demorado recebimento, recaiu sobre o direito de uso de linhas telefônicas, sem qualquer ofensa ao artigo 655 do Código de Processo Civil porque aquele e este estão arrolados no respectivo inciso X, na categoria de ´´direitos e ações´´. Recurso especial não conhecido" (STJ, REsp 177.537/PR, Rel. Min Ari Pargendler, DJ DATA: 23-04-2001, p. 159).

"PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO. EFETIVIDADE. ONEROSIDADE.

A execução deve ser levada a efeito pelo modo menos gravoso para o devedor (CPC, art. 620), mas sem prejuízo de sua efetividade. Agravo regimental não provido. (STJ, AgRg no Ag 380747/SP; Rel. Min Ari Pargendler, DJ 01-10-2001, p. 216)

"AGRAVO DE INSTRUMENTO SALDO BANCÁRIO – PENHORA – POSSIBILIDADE – ÔNUS DA PROVA – OFENSA AO PRINCÍPIO DA MENOR ONEROSIDADE PARA O DEVEDOR – INOCORRÊNCIA

- A execução tem como meta a satisfação do direito do credor (CPC, art. 646).

- A regra da execução menos gravosa para o devedor, prevista no art. 620 do CPC, somente tem aplicabilidade, se não ocasionar prejuízos ao credor, que tem o direito de ver o seu crédito satisfeito.

- A penhora de pecúnia em conta corrente do executado é possível, notadamente quando não se faz prova convincente de que a constrição poderá inviabilizar as atividades normais da executada." (TJMG, Agravo de Instrumento 4595395; Rel. Des. Armando Freire)

Daí anotar Daniel Amorim Assunção Neves:

"A aplicação do art. 620 do CPC, entretanto, não pode ser utilizada aos maus pagadores que se escondem por detrás da menor onerosidade simplesmente para deixar de cumprir suas obrigações e complicar o andamento processual. A efetividade da tutela executiva deverá nortear a atuação judicial no processo de execução, devendo lembrar o juiz que qualquer espécie de satisfação forçada, contra a vontade do devedor, naturalmente lhe acarretará prejuízos e incômodos. O princípio da menor onerosidade não afasta tais prejuízos e desconfortos do caso concreto" [09]

A execução menos onerosa deve ser administrada pelo devedor. Se prejuízos maiores ocorrerem, certamente será por ausência de sua participação séria no processo. Conclui de modo semelhante a Desembargadora Elaine Harzheim Macedo:

"Não é de olvidar, outrossim, que as informações e os bloqueios de valores encontram fundamento na própria incúria do executado, que deixa de cumprir com seu dever de litigar com boa-fé. Tanto é assim que pode ele perfeitamente afastar a investigação, tomando a iniciativa e indicando desde logo bens à penhora, entre os quais se inclui o dinheiro em espécie ou em depósitos bancários" [10]

A constatação de que a execução menos gravosa se realiza na proporção da participação séria do devedor assegura coerência e determina ao julgador tomar todas as medidas eficazes, principalmente quando o devedor informa ao oficial de justiça que não possui quaisquer bens a serem penhorados. Ora, a partir dessa declaração o devedor estará demonstrando, de antemão, que não colaborará na implementação do crédito. Por conseguinte, autoriza o magistrado a providenciar todos os meios que permitam averiguar a veracidade daquela declaração do executado.


 

VI - Conclusão

O art. 620 do CPC não se presta como argumento abstrato para a defesa de que a penhora on line deve obedecer a um suposto regime de gradação dos meios de penhora dispostos na lei.

Tal gradação importaria, ademais, em contradição à lógica da efetividade da execução na qual se embasa a reforma encetada pela Lei 11.382/06, conforme argutamente observado por Marinoni:

"Também não há mais como pensar que o exeqüente, quando não souber da localização dos depósitos financeiros do executado, somente pode requerer ao juiz que requisite informações ao Banco Central após ter exaurido as tentativas de localização de outros bens penhoráveis.

(...)

Se o exeqüente tem direito de penhorar preferencialmente dinheiro, mas não sabe – até porque é praticamente impossível saber – onde estão localizados os depósitos do executado, tal direito simplesmente deixará de existir se o juiz não puder requisitar informações do Banco Central antes de exauridas as atividades necessárias à localização de outros bens penhoráveis. Ora, caso a requisição de informações seja subordinada à tentativa de localização dos bens, a penhora de dinheiro logicamente perderá a preferência para a penhora de outros bens." [11]

O juiz sequer pode pensar em aplicar o art. 620 do CPC antes da colaboração do executado no processo, em virtude da diretriz da participação séria do devedor. A execução menos onerosa se observa na medida da participação do devedor, de acordo com o "aspecto cooperativo" da nova execução (Humberto Theodoro Júnior).

A diretriz da participação séria do devedor possui funções negativas, no sentido de limitar as medidas que o juiz pode tomar na observância ao art. 620 do CPC. Assim, (i) é vedado ao julgador presumir qualquer prejuízo abstrato ao devedor, pois, tal como demonstrado, a execução menos onerosa depende da participação do executado; (ii) não é dado ao julgador retardar as medidas que a lei disponibiliza para a efetivação do crédito, criando gradação prejudicial ao exeqüente entre os meios de penhora; (iii) ao juiz é proibido tomar medidas processuais que impliquem, na prática, hipóteses supralegais de impenhorabilidade; (iv) o juiz não pode enfocar o art. 620 do CPC como autorização ao paternalismo, mas sim como abertura para permitir ao devedor a participação séria no processo; (v) é defeso ao julgador interpretar o art. 620 do CPC como uma autorização para evitar desconfortos ao devedor (Daniel Amorim Assunção Neves), pois a este incumbe afastá-los por meio de sua participação séria no processo.


 

VII - Bibliografia

MACEDO, Elaine Harzheim. Penhora on line: uma proposta de concretização da jurisdição executiva. In: SANTOS, Ernane Fidélis dos; WAMBIER, Luiz rodrigues; NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Execução Civil – Estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: RT, 2.007;

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Execução. São Paulo: RT, 2007, p. 272.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção e outros. Reforma do CPC -2¬, São Paulo: RT, 2007, p. 259.

OLIVEIRA, Robson Carlos de. Lineamentos atuais da execução civil: análise das principais alterações introduzidas pelas Leis 11.232, de 22.12.2005, e 11.382, de 06.12.2006. In: SANTOS, Ernane Fidélis dos; WAMBIER, Luiz Rodrigues; NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Execução Civil – Estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: RT, 2.007;

THEODORO JÚNIOR, Humberto. A reforma da execução do título extrajudicial – Lei 11.382, de 06 de dezembro de 2.006, Rio de Janeiro: Forense, 2.007;

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil –Vol II. Rio de Janeiro: Forense, 2007.


 

Notas

01 THEODORO JÚNIOR, Humberto. A reforma da execução do título extrajudicial – Lei 11.382, de 06 de dezembro de 2.006, Rio de Janeiro: Forense, 2.007, p 34.

02 MACEDO, Elaine Harzheim. Penhora on line: uma proposta de concretização da jurisdição executiva. In: SANTOS, Ernane Fidélis dos; WAMBIER, Luiz Rodrigues; NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Execução Civil – Estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: RT, 2.007, p. 472.

03 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil –Vol II. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.318.

04 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil –Vol II. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 317.

05 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil –Vol II. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.132.

06 OLIVEIRA, Robson Carlos de. Lineamentos atuais da execução civl: análise das principais alterações introduzidas pelas Leis 11.232, de 22.12.2005, e 11.382, de 06.12.2006. In: SANTOS, Ernane Fidélis dos; WAMBIER, Luiz Rodrigues; NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Execução Civil – Estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: RT, 2.007, p. 919.

07 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Execução. São Paulo: RT, 2007, p. 272.

08 MACEDO, Elaine Harzheim. Penhora on line: uma proposta de concretização da jurisdição executiva. In: SANTOS, Ernane Fidélis dos; WAMBIER, Luiz Rodrigues; NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Execução Civil – Estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: RT, 2.007, p. 468.

09 NEVES, Daniel Amorim Assumpção e outros. Reforma do CPC -2, São Paulo: RT, 2007, p. 259.

10 MACEDO, Elaine Harzheim. Penhora on line: uma proposta de concretização da jurisdição executiva. In: SANTOS, Ernane Fidélis dos; WAMBIER, Luiz Rodrigues; NERY JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Execução Civil – Estudos em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: RT, 2.007, p. 468.

11 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Execução. São Paulo: RT, 2007, p. 266,267.

Informações bibliográficas:



Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:

DI SPIRITO, Marco Paulo Denucci. A diretriz da participação séria do devedor na nova execução civil: balizas para a aplicação do art. 620 do CPC à penhora on line. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1454, 25 jun. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10047>. Acesso em: 25 jun. 2007.

Sem modulação

STF confirma retroatividade para IPI com alíquota zero

por Maria Fernanda Erdelyi

O Fisco consolidou nesta segunda-feira (25/6) sua vitória contra os contribuintes de IPI que perderam a possibilidade de usar créditos do imposto na compra de insumos não-tributadas ou tributados com alíquota zero. O plenário do Supremo Tribunal Federal rejeitou por maioria a questão de ordem proposta pelo ministro Ricardo Lewandowski para modular os efeitos da decisão que derrubou o crédito em fevereiro deste ano.

Lewandowski defendeu que o recolhimento do imposto vigorasse desde o momento em que o Supremo decidiu o mérito da matéria, em fevereiro. Para ele, a decisão do Supremo teria efeito ex-nunc.

Para o ministro Eros Grau, que deu o voto vencedor, a decisão tem efeito ex-tunc, ou seja, o recolhimento deve retroagir aos últimos cinco anos em que a lei vigorou. Segundo o ministro, o Supremo não declarou a constitucionalidade da lei, mas apenas interpretou o sentido de lei já existente e em vigor.

Com isso, as empresas que estavam aproveitando o crédito beneficiadas por decisões judiciais, deverão restituir o imposto que não foi pago e, ainda, poderão sofrer ações rescisórias da Fazenda Nacional. A decisão garantirá a recuperação de alguns bilhões de reais ao governo - não há estimativa de quanto. De acordo com dados da Receita Federal, o Governo deixará de perder cerca de R$ 20 bilhões anualmente.

As empresas esperavam uma resposta positiva da Corte para a modulação dos efeitos aos quais estariam sujeitas apenas a partir de fevereiro deste ano, quando o Supremo reconheceu a constitucionalidade do impedimento ao crédito. A decisão foi tomada em recurso extraordinário, de forma que só tem efeitos para o caso concreto, mas abrirá precedentes para milhares de outros casos que tramitam na Justiça de todo país.

Leia os votos dos ministros Eros Grau e Ricardo Lewandowski:

QUEST. ORD. EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO 353.657- 5 PARANÁ

RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO

RECORRENTE(S) : UNIÃO

ADVOGADO(A/S) : PFN - EULER BARROS FERREIRA LOPES

RECORRIDO(A/S) : MADEIRA SANTO ANTÔNIO LTDA ADVOGADO(A/S) : WALTER TOFFOLI E OUTRO(A/S)

ADVOGADO(A/S) : FERNANDA GUIMARÃES HERNANDEZ E OUTRO(A/S)

V O T O

O SENHOR MINISTRO Eros Grau: O artigo 27 da Lei n.9.868/98 estabelece que, "[a]o declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado".

2. O preceito respeita a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, quando se manifestem razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social. Cuida dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade. Inconstitucionalidade. Repito: inconstitucionalidade. O preceito visa a minimizar eventuais efeitos perniciosos decorrentes da retroatividade dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade. Declarações de constitucionalidade não geram efeitos perniciosos ao operarem retroativamente. Para tanto devem existir. Declarações judiciais de constitucionalidade de qualquer porção do ordenamento apenas o confirmam, positivamente. Não se modulam declarações de constitucionalidade de leis ou atos normativos --- toda a gente sabe disso.

3. Pois no caso não houve, em momento nenhum, declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Esta Corte simplesmente afirmou a correção da interpretação conferida ao princípio da não-cumulatividade do IPI, adversa à postulada por alguns contribuintes do tributo. Não há nenhum sentido, portanto, em neste caso cogitar-se de modulação de efeitos de declaração de inconstitucionalidade. Pois é certo --- vou repetir --- é certo que aqui não há inconstitucionalidade.

4. Mas não é só. Aqui também não cabe cogitarmos de ameaça de qualquer ordem à segurança jurídica. Recebi em meu gabinete memorial da Procuradoria da Fazenda Nacional no qual se demonstra que nenhuma decisão a respeito do tema, a alíquota zero, transitou em julgado. Como se falar, destarte, em mudança de jurisprudência que jamais foi fixada? Isso consubstanciaria um autêntico non sense. Não se pode alterar o que jamais foi fixado definitivamente por este Tribunal. O argumento de que existiria "jurisprudência pacífica" mesmo quando as decisões não tenham transitado em julgado --- e nenhuma delas transitou em julgado! --- é quase ingênuo. O que detém força de verdade legal é a coisa julgada, cuja autoridade, quando reiterada, faz jurisprudência. Não houve, no caso, mudança de jurisprudência desta Corte, visto que ela --- essa jurisprudência -- - não fora estabelecida.

5. Além do mais é certo que a incorporação ao balanço de efeitos tributários apenas se pode dar quando consumada a coisa julgada. Até então a pretensão judicial da pessoa jurídica deverá ser nele registrada em conta de provisão não dedutível. Se não há, em situações como a de que se trata, em que o contribuinte vai a Juízo postular benefício ou vantagem tributária, se não há coisa julgada em situações como tais o contribuinte não pode computar resultados e/ou distribuí-los. Dizendo-o na sofisticada linguagem dos economistas, o ambiente institucional que prevalecia quando o agente econômico foi a Juízo pleitear o benefício ou vantagem não a abrangia. Tanto é que foi a Juízo, o agente econômico, pretendendo afirmá-la.

6. Ora, se o resultado desse pleito judicial é adverso ao agente econômico, evidentemente será ele responsável pelos efeitos desse resultado. Não é possível atribuirmos ao Estado [rectius, à sociedade] essa responsabilidade. Fazê-lo, isso equivaleria a instituirmos o capitalismo sem as incertezas inerentes às decisões de produção e de investimento, o capitalismo sem riscos, sem o salto no escuro.

7. Este Tribunal tem sido rigoroso, algumas vezes impiedoso, com os economicamente frágeis --- recordo o caso das pensões por morte. Tenho por inadmissível que não o seja, na proporção adequada, em relação aos demais agentes econômicos.

8. Por fim, nenhuma razão relacionada ao interesse social, menos ainda a "excepcional interesse social", prospera no sentido de aquinhoarem-se empresas que vieram a Juízo afirmando interpretação que esta Corte entendeu equivocada. Fizeram-no, essas empresas, por sua conta e risco. É seguramente inusitado: o empresário pretende beneficiar-se por créditos aos quais não faz jus; o Judiciário afirma que efetivamente o empresário não é titular de direito a esses mesmos créditos, mas o autoriza a fazer uso deles até certa data... Um "negócio da China" para os contribuintes, ao qual corresponde inimaginável afronta ao interesse social.

Um último ponto. Em memorial muito bem elaborado afirma-se que "norma jurídica é norma interpretada". Na verdade não é bem assim: norma jurídica é texto --- e não norma --- interpretado. Texto e norma não se superpõem. A norma é produzida pelo intérprete. Talvez a doutrina finalmente desperte para a distinção que há entre a dimensão legislativa e a dimensão normativa do direito, doutrina que tem se limitado a reproduzir, em matéria de interpretação do direito e da Constituição, o que de melhor foi produzido no século XIX. De toda sorte cabe aqui qual u'a luva uma observação de CARLOS ALBERTO DIREITO: "Sempre que aparece uma nova doutrina, logo se multiplicam os seus extremos" (Comentários ao novo Código Civil, volume XIII, Forense, Rio de Janeiro, 2.004, pág.12). O argumento de que a norma --- e não a lei --- não poderia retroagir ignora que, qual anota PAOLO GROSSI (Assolutismo giuridico e diritto privato, Giuffrè, Milano, 1.998, págs. 358-359), são duas as forças que, em direções opostas, percorrem o direito, uma tendente à rigidez, outra à elasticidade; e duas são as exigências fundamentais que nele se manifestam, a da [i] certeza e liberdade individual garantidas pela lei no sistema do direito burguês e a da sua [ii] contínua adequação ao devir social, garantida pela interpretação. A lei em princípio retroage; isso apenas não ocorre quando de sua retroação advier prejuízo a direito adquirido, a ato jurídico perfeito ou a coisa julgada. A norma, essa se aplica, tal como produzida pelo intérprete autêntico, ao caso. De modo que a menção a uma irretroatividade da norma consubstancia autêntico non sense. Lições de Teoria Geral do Direito não nos fariam mal.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 353.657-5 PARANÁ

RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

RECORRENTE(S): UNIÃO

ADVOGADO(A/S): PFN - EULER BARROS FERREIRA LOPES

RECORRIDO(A/S): MADEIRA SANTO ANTÔNIO LTDA

ADVOGADO(A/S): WALTER TOFFOLI E OUTRO(A/S)

ADVOGADO(A/S): FERNANDA GUIMARÃES HERNANDEZ E OUTRO(A/S)

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 370.682-9 SANTA CATARINA

RELATOR: MIN. ILMAR GALVÃO

RECORRENTE(S): UNIÃO

ADVOGADO(A/S): PFN - ARTUR ALVES DA MOTTA

RECORRIDO(A/S): INDÚSTRIA DE EMBALAGENS PLÁSTICAS GUARÁ LTDA

ADVOGADO(A/S): FERNANDA GUIMARÃES HERNANDEZ E OUTRO(A/S)

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(S/ QUESTÃO DE ORDEM)

O Senhor Ministro RICARDO LEWANDOWSKI: - Senhora Presidente, na última Sessão em que os presentes recursos vieram a julgamento, tendo em conta a alteração – pela maioria de um voto apenas - na jurisprudência até agora assentada por esta Corte sobre o direito ao crédito de IPI decorrente da aquisição de matéria-prima cuja entrada é isenta, não tributada ou sobre a qual incide a alíquota zero, submeti questão de ordem a este egrégio Plenário para que ele decidisse sobre a possibilidade de conceder-se efeitos prospectivos às decisões que deram guarida ao inconformismo da Fazenda Pública no tocante à polêmica questão.

Para tanto, permito-me tecer algumas considerações iniciais, de cunho doutrinário, antes de ingressar no mérito propriamente dito do tema.

A Constituição, segundo a lição clássica de Kelsen, é a norma fundamental que empresta validade a todas as demais normas de um sistema jurídico.[1] Por essa razão, a compatibilidade destas com aquela configura verdadeiro imperativo categórico, na acepção kantiana da expressão.[2] Dito de outra maneira, a incompatibilidade de uma norma qualquer com o texto magno faz desaparecer o fundamento que permite que ela exista validamente em um dado ordenamento legal. Daí falar-se no princípio da supremacia das normas constitucionais, sobretudo em se tratando de constituições escritas e rígidas.

Para preservar essa supremacia, existem mecanismos de defesa, preventivos e repressivos, destinados a salvaguardar a higidez do sistema jurídico, mediante a neutralização das normas incompatíveis com o texto constitucional. Entre nós, o controle repressivo, cometido ao Poder Judiciário, é de natureza híbrida, visto que pode ser realizado tanto pelo Supremo Tribunal Federal, como por qualquer outro órgão judicante, singular ou coletivo. No primeiro caso, tem-se o controle concentrado de constitucionalidade e, no segundo, o incidental ou difuso.

Embora a Constituição não explicite qual a pena cominada à norma inconstitucional, ela decorre do princípio da supremacia, correspondendo à sanção de nulidade ou anulabilidade, com efeitos, respectivamente, ex tunc ou ex nunc. No controle difuso de constitucionalidade, a nulidade, como regra, é reconhecida ipso iure, operando ab initio, ou seja, retroativamente;[3] no controle concentrado, também se declara a nulidade do ato normativo, geralmente com eficácia ex tunc, podendo, todavia, ser ele apenas anulado, estabelecendo-se que a decisão que reconhece a inconstitucionalidade opera ex nunc ou pro futuro.

Apesar de suscitar controvérsias na doutrina, por entenderem certos teóricos - ainda jungidos a uma visão mais ortodoxa acerca do tema - que a norma inconstitucional, ao menos em nosso sistema, é sempre nula, cabendo ao Judiciário simplesmente declarar tal condição, quando instado a fazê-lo, a pena de anulabilidade encontra, atualmente, previsão expressa em ordenamentos jurídicos de vários países,[4] inclusive na legislação ordinária brasileira.[5]

Como a inconstitucionalidade pode ser argüida a qualquer tempo, não é difícil imaginar que a adoção sistemática da sanção de nulidade acarretaria graves transtornos às relações sociais, visto que a própria certeza do direito poderia ser colocada em xeque. A anulação da norma inconstitucional, com a modulação dos efeitos temporais da decisão, surge assim como precioso instrumento que permite temperar o princípio da supremacia constitucional com outros valores socialmente relevantes, em especial o da segurança jurídica.

A necessidade de preservar-se a estabilidade de relações jurídicas pré-existentes, levou o legislador pátrio, inspirado nos modelos alemão e português, a permitir, nas Leis 9.868, de 10 de novembro de 1999, e 9.882, de 3 de dezembro de 1999, que o Supremo Tribunal Federal regule, ao seu prudente arbítrio, os efeitos das decisões proferidas nas ações declaratórias de constitucionalidade, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas argüições de descumprimento de preceito fundamental.

Nesse sentido, o art. 27 da Lei 9.869/1999 estabelece que o Supremo, por maioria de dois terços de seus membros, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, pode restringir os efeitos de decisão que, nas ações diretas ou declaratórias, reconheça a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, estabelecendo que ela só tenha eficácia a partir do trânsito em julgado ou de outro momento. O art. 11 da Lei 9.882/1999 estende essa possibilidade às ações de argüição de descumprimento de preceito fundamental.

As referidas disposições afastam, pois, a imposição obrigatória da sanção de nulidade, com efeitos ex tunc, visto que autorizaram o STF a estabelecer, discricionariamente, tendo como balisas os conceitos indeterminados de "segurança jurídica" ou de "excepcional interesse social", que sua decisão, em certos casos, tenha eficácia em momento posterior à vigência da norma declarada inconstitucional.

É dizer, o direito positivo, agora, consagra a tese, já defendida por alguns no passado, em sede doutrinária,[6] segundo a qual a decisão de inconstitucionalidade tem natureza constitutivo-negativa, e não apenas declaratória, como se entendia tradicionalmente, a partir de uma interpretação clássica do princípio da supremacia, combinada com uma leitura mais estrita dos dispositivos constitucionais que tratam da matéria.[7]

O efeito pro futuro, previsto nas Leis 9.868/1999 e 9.882/1999, convém registrar, difere do efeito ex nunc: este opera desde a decisão de inconstitucionalidade, ao passo que aquele atua a partir do momento escolhido pelo Supremo. Embora o efeito prospectivo variável possa causar certa espécie, seja por seu aspecto inovador, seja por não encontrar previsão constitucional expressa, quando compreendido sob uma ótica teleológica, não é difícil constatar que ele que encontra fundamento no princípio da razoabilidade, porquanto objetiva não apenas minimizar o impacto das decisões do Supremo sobre relações jurídicas já consolidadas, como também evitar a ocorrência de um vácuo legislativo, em tese mais gravoso para o ordenamento legal do que a subsistência temporária da norma declarada inconstitucional.

É bem de ver, por outro lado, que os arts. 27 da Lei 9.868/1999 e 11 da Lei 9.882/1999, na medida em que simplesmente autorizam o Supremo a "restringir os efeitos" da declaração de inconstitucionalidade, sem qualquer outra limitação expressa, a rigor não excluem a modulação da própria eficácia subjetiva da decisão, de maneira a permitir que se circunscreva o seu alcance – em geral erga omnes -- a um universo determinado de pessoas. A redação também não afasta a possibilidade, em tese, de desconsiderar-se o efeito repristinatório da decisão de inconstitucionalidade sobre o ato revogado.

Não impressiona, data venia, o argumento segundo o qual o poder atribuído ao Supremo Tribunal Federal de regular os efeitos das decisões proferidas no bojo de ações de natureza objetiva, em particular quanto ao seu aspecto temporal, não se encontra previsto em nenhum dispositivo do texto constitucional. É que o Supremo, segundo o art. 102, caput, da Carta Magna, exerce o relevante papel de "guarda da Constituição". Trata-se de um múnus de matiz político, cujo exercício comporta considerável margem de discricionariedade, exatamente para que a Corte possa dar efetividade ao princípio da supremacia constitucional.

Recorde-se, ademais, que o STF ao proceder, em casos excepcionais, à modulação dos efeitos de suas decisões, por motivos de segurança jurídica ou de relevante interesse social, estará realizando a ponderação de valores e princípios abrigados na própria Constituição.

Ora, esses fundamentos que autorizam a modulação dos efeitos nas decisões proferidas nos processos de índole objetiva, também se aplicam, mutatis mutandis, aos processos de natureza subjetiva. Nesse sentido, existem precedentes nesta Corte, dentre os quais sobressai o acórdão prolatado, em 06.06.2002, no paradigmático RE 197.917/SP, cujo relator foi o Ministro Maurício Corrêa.

Naquele julgamento, o Ministro Gilmar Mendes, em erudito voto-vista assentou não haver dúvida de que "a limitação de efeito é um apanágio do controle judicial de constitucionalidade, podendo ser aplicado tanto no controle direto quanto no controle incidental", sobretudo quando, à luz "de um severo juízo de ponderação que, tendo em vista análise fundada no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a idéia de segurança jurídica ou outro princípio constitucionalmente relevante".

De fato, embora estejamos tratando, aqui, de processos subjetivos, a verdade é que, quando a matéria é afetada ao Plenário, a decisão resultante, na prática, surtirá efeitos erga omnes. Nessa linha, o Ministro Gilmar Mendes, chamou atenção, no citado pronunciamento, para a circunstância de que, "se o STF declarar a inconstitucionalidade restrita, sem qualquer ressalva, essa decisão afeta os demais processos com pedidos idênticos pendentes de decisão nas diversas instâncias."

Em julgado mais recente, datado de 03.02.2005, a saber, na ação cautelar, autuada sob o número 2.859-7, com pedido liminar, para a concessão de efeito suspensivo em recurso extraordinário, interposto pelo Município de São Paulo, contra acórdão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça proferido em ação direta de inconstitucionalidade, o Plenário desta Corte referendou a cautelar concedida pelo Relator, Ministro Gilmar Mendes, com eficácia ex nunc, perfilhando a técnica, explicitada no voto condutor, da modulação dos efeitos de decisões proferidas no âmbito do controle difuso.

Acrescente-se aos argumentos acima expendidos que o legislador pátrio, ao dispor sobre a edição de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal, previu, de forma expressa, no art. 4º da Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006, recentemente promulgada, a possibilidade de modulação de seus efeitos, verbis:

"Art. 4º. A súmula com efeito vinculante tem eficácia imediata, mas o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 (dois terços) dos seus membros, poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público."

Percebe-se que o novo diploma legal apenas positivou uma lógica decisória inerente à própria função político-jurídica da Suprema Corte, tal qual o fez a Lei 9.868/1999, conforme procurei demonstrar. A modulação dos efeitos vinculantes das súmulas, pois, seja quanto à sua abrangência, seja quanto aos seus efeitos temporais, tendo em mira a salvaguarda de valores ou princípios constitucionais relevantes, sobre decorrer da própria sistemática de controle de constitucionalidade adotada pela Carta Magna, encontra amparo explícito na lei ordinária que lhe delineou os contornos.

Como o enunciado das súmulas vinculantes poderá ser – e, em regra será – deduzido a partir de decisões reiteradamente prolatadas no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, não há negar que, por via de conseqüência, mostra-se também perfeitamente possível a modulação dos efeitos das decisões proferidas nos processos de índole subjetiva, mormente quando resultantes de julgamentos do Plenário do Supremo Tribunal Federal.

Bem, como é do conhecimento de todos, em duas ocasiões anteriores, a última em 18.12.2002, o Plenário desta Suprema Corte manifestou-se favoravelmente, por ampla maioria, ao creditamento do IPI nas operações de que tratam os recursos sob exame. [8] E com base nessas decisões foram tomadas várias outras, de caráter monocrático, neste Tribunal,[9] e de natureza coletiva, no Superior Tribunal de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais.

Em pesquisa que realizei, pude perceber que, não obstante a tendência que aqui se manifestava acerca da mudança do entendimento sobre a matéria, praticamente todos os Tribunais Regionais Federais e mesmo os magistrados de primeira instância da Justiça Federal continuaram a prestigiar a jurisprudência predominante na Corte.

Não é por outra razão que Karl Larenz, ao tratar da importância dos precedentes pretorianos e da construção daquilo que denomina de "Direito judicial", lembra que:

"(...) existe uma grande possibilidade no plano dos factos de que os tribunais inferiores sigam os precedentes dos tribunais superiores e estes geralmente se atenham à sua jurisprudência, os consultores jurídicos das partes litigantes, das firmas e das associações contam com isto e nisto confiam. A conseqüência é que os precedentes, sobretudo os dos tribunais superiores, pelo menos quando não deparam com uma contradição demasiado grande, serão considerados, decorrido largo tempo, Direito vigente. Disto se forma em crescente medida, como complemento e desenvolvimento do Direito legal, um Direito judicial (...)."[10]

Foi exatamente o que ocorreu na situação em apreço: os contribuintes, fiados em entendimento pacificado na Suprema Corte do País, por quase uma década, visto que as primeiras decisões datam do final dos anos 90,[11] passaram a creditar-se, de forma rotineira, do IPI decorrente das operações que envolviam a entrada de insumos isentos, tributados com alíquota zero ou não tributados.

Por tal motivo, e considerando que não houve modificação no contexto fático e nem mudança legislativa, mas sobreveio uma alteração substancial no entendimento do STF sobre a matéria, possivelmente em face de sua nova composição, entendo ser conveniente evitar que um câmbio abrupto de rumos acarrete prejuízos aos jurisdicionados que pautaram suas ações pelo entendimento pretoriano até agora dominante.

Isso, sobretudo, em respeito ao princípio da segurança jurídica que, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello, tem por escopo "evitar alterações surpreendentes que instabilizem a situação dos administrados", bem como "minorar os efeitos traumáticos que resultam de novas disposições jurídicas que alcançaram situações em curso".[12]

Não se propugna com isso, é evidente, a cristalização da jurisprudência ou a paralisia da atividade legislativa, pois as decisões judiciais e as leis não podem ficar alheias à evolução social e ao devir histórico. Não se pode olvidar, contudo, que cumpre, como sabiamente apontou a Ministra Cármen Lúcia, em magistral estudo que integra coletânea de artigos em homenagem ao Ministro Sepúlveda Pertence, conferir "segurança" ao processo de transformação.[13]

Por essas razões entendo que convém emprestar-se efeitos prospectivos às decisões em tela, sob pena de impor-se pesados ônus aos contribuintes que se fiaram na tendência jurisprudencial indicada nas decisões anteriores desta Corte sobre o tema, com todas as conseqüências negativas que isso acarretará nos planos econômico e social.

Para se ter uma idéia do gravame que uma decisão ex tunc representaria para os jurisdicionados, registro que a União, antes mesmo da consolidação da nova maioria no Plenário, já vinha ingressando com ações rescisórias perante o Tribunal Federal da 4ª Região contra contribuintes que, com fundamento nos julgados anteriores do STF, obtiveram o direito de creditar-se do IPI nas operações isentas, não tributadas ou taxadas com alíquota zero.[14]

Isso, é claro, sem mencionar as incontáveis execuções fiscais que serão ajuizadas, dentro do prazo prescricional, contra os contribuintes que se valeram dos créditos escriturais, em conformidade com a jurisprudência desta Corte e demais tribunais.

Assim, Senhora Presidente, ante as peculiaridades do caso, e em homenagem não apenas ao princípio da segurança jurídica, mas também aos postulados da lealdade, da boa-fé e da confiança legítima, sobre os quais se assenta o próprio Estado Democrático de Direito, proponho que se confira efeitos ex nunc as decisões proferidas nos REs 353.657 e 370.682.


 

[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Armênio Amado, 3ª ed., 1974, p. 280.

[2] Sobretudo no que respeita à incorporação dos fundamentos axiológicos da constituição ao processo hermenêutico.

[3] No controle difuso, o órgão julgador, como regra, restringe-se a reconhecer a nulidade pré-existente do ato normativo, segundo ensina CANOTILHO, J.J., Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 7ª ed., s.d., p. 904.

[4] Portugal (art. 282, 2 e 4, da Constituição), México (art. 105, I, da Constituição), Polônia (art. 190, 3,da Constituição, Alemanha (art. 79, 2, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).

[5] Leis 9.868, de 10 de novembro de 1999, e 9.882, de 3 de dezembro de 1999.

[6] Por exemplo, Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, tomo III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, pp. 615/626.

[7] Arts. 52, X, 97, 102, III, b, da CF, dentre outros.

[8] RE 212.484/RS, Rel. para o acórdão Min. Nelson Jobim, DJ 27.11.1998, e RE 350.446/PR, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 06.6.2003, no qual se reconheceu o direito ao creditamento do IPI na hipótese de incidência de alíquota zero tal como se fez nos casos de isenção.

[9] RE 363.777/RS, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 03.02.2002; RE 371.848/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27.03.2003; RE 370.230/SC, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 08.04.2003, entre outros, somando mais de sessenta decisões.

[10] Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª ed., 1983, pp. 521/522.

[11] Cumpre notar que a ausência do trânsito em julgado deveu-se apenas à interposição de agravos regimentais e embargos de declaração.

[12] Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 19ª ed., 2005, pp. 75/76.

[13] "O princípio da coisa julgada e o vício de inconstitucionalidade". In: ANTUNES ROCHA, Cármen Lúcia (org.). Constituição e Segurança Jurídica: Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 168.

[14] AR 2006.04.00.022579-6/SC; AR 2004.04.01.030618-8/SC; AR 2002.04.01.042894-7/SC; AR 2001.04.01.079200-8/PR, por exemplo.

Revista Consultor Jurídico, 25 de junho de 2007