Luiz Antonio Costa de Santana

sexta-feira, setembro 23, 2005

Deveres gerais de conduta nas obrigações civis

Deveres gerais de conduta nas obrigações civis

Paulo Luiz Netto Lôbo
doutor em Direito pela USP, advogado, professor dos programas de Mestrado e Doutorado em Direito da UFPE, UFAL e UnB, membro do Conselho Nacional de Justiça

SUMÁRIO: 1. DEVERES ANEXOS À PRESTAÇÃO E DEVERES GERAIS DE CONDUTA; 2. DEVER DE BOA-FÉ OBJETIVA NAS OBRIGAÇÕES; 2.1. Deveres pré e pós-contratuais; 2.2. Dever de não agir contra o ato próprio; 3. DEVER DE REALIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DAS OBRIGAÇÕES; 4. DEVER DE EQUIVALÊNCIA MATERIAL DE DIREITOS E DEVERES; 5. DEVER DE EQUIDADE; 6. DEVER DE INFORMAR; 6.1. Dever de informar e efeito jurídico da publicidade; 6.2. Dever de informar e garantia de cognoscibilidade; 7. VIOLAÇÃO POSITIVA DA OBRIGAÇÃO.


1. DEVERES ANEXOS À PRESTAÇÃO E DEVERES GERAIS DE CONDUTA

Há deveres que excedem do próprio e estrito dever de prestação, especialmente nas obrigações negociais, mas que são com ele necessariamente anexos, unidos ou correlacionados. Larenz denomina-os "deveres de conduta", que resultam do que as partes estipularam, ou do princípio da boa-fé, ou das circunstâncias, ou, finalmente, das exigências do tráfico, que podem afetar a conduta que de qualquer modo esteja em relação com a execução da obrigação. Para ele, esses deveres não podem ser demandados autonomamente, mas sua violação fundamenta obrigação de indenização ou, ante certas circunstâncias, a resolução do negócio jurídico. Esses deveres resultam naturalmente da relação jurídica obrigacional, mas se diferenciam por seu caráter secundário ou complementar do dever primário de adimplemento. Toda obrigação recebe seu caráter distintivo (sua configuração como contrato de locação, de compra e venda, de empreitada) precisamente através do dever primário de adimplemento, mas seu conteúdo total compreende ademais deveres de conduta mais ou menos amplos (1).

Sem embargo da excelência dessa construção doutrinária, que dilatou os efeitos das obrigações, no sentido da solidariedade social, e da cooperação, com positiva influência na doutrina brasileira, atente-se para duas importantes restrições que delas resultam: a) os deveres de conduta seriam imputáveis apenas ao devedor; b) seriam derivados do dever primário da prestação de adimplemento, neste sentido qualificando-se como secundários, ou complementares, ou acessórios, ou conexos, ou anexos, segundo variada terminologia adotada na doutrina.

A doutrina jurídica portuguesa opta pela denominação "deveres acessórios de conduta", conforme se vê em Antunes Varela e em Menezes Cordeiro. Antunes Varela distingue os deveres acessórios de conduta, assim entendidos os que estão dispersos no Código Civil e na legislação avulsa, a exemplo de não se vender coisa com vício, e o "dever geral de agir de boa-fé", que seria muito mais que um dever acessório. A generalidade dos deveres acessórios de conduta não daria lugar à exigibilidade da prestação ou do adimplemento, mas sua violação poderia obrigar à indenização dos danos causados à outra parte ou dar mesmo origem à resolução do contrato ou à sanção análoga (2).Para Menezes Cordeiro são deveres acessórios: a) os deveres in contrahendo, impostos aos contraentes durante as negociações que antecedem o contrato, revelados pelos deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade; b) deveres de eficácia protetora de terceiros; c) deveres post pactum finitum, que subsistiriam após a extinção da relação obrigacional; d) deveres que subsistem na nulidade (3). Esses deveres remetem, de um modo ou de outro, ao princípio ou dever geral de boa-fé.

Todavia, a evolução do direito fez despontar deveres de conduta que se revestiram da dignidade de princípios normativos, de caráter constitucional e infraconstitucional, que deixaram de ter "caráter secundário, complementar, do autêntico dever de adimplemento", referido por Larenz, que tanta influência exerceu e exerce na civilística brasileira. Os deveres de conduta, convertidos em princípios normativos, não são simplesmente anexos ao dever de prestar adimplemento. A evolução do direito fê-los deveres gerais de conduta, que se impõem tanto ao devedor quanto ao credor e, em determinadas circunstâncias, a terceiros. Esses deveres não derivam da relação jurídica obrigacional, e muito menos do dever de adimplemento; estão acima de ambos, tanto como limites externos ou negativos, quanto como limites internos ou positivos. Derivam diretamente dos princípios normativos e irradiam-se sobre a relação jurídica obrigacional e seus efeitos, conformando e determinando, de modo cogente, assim o débito como o crédito. Os deveres gerais de conduta exigem interpretação de seus efeitos e alcances diretamente conjugada aos dos princípios de onde promanam. A compreensão de uns implicam a dos outros.

Os princípios são explícitos quando já positivados no ordenamento jurídico, como os referidos no art. 170 da Constituição, para a ordem econômica (justiça social, livre iniciativa, valorização do trabalho humano, função social da propriedade, defesa do consumidor etc.); são implícitos quando são extraídos dos valores consagrados no ordenamento jurídico mercê da interpretação sistemática de seus preceitos. No que respeita ao contrato em geral, o Código Civil de 2002 verteu em princípios normativos explícitos a boa-fé objetiva ou de conduta e a função social e, implicitamente, a equivalência material. Esses princípios engendram deveres gerais de conduta a qualquer obrigação e não apenas aos contratos, pois têm sede constitucional, como desdobramento dos princípios da solidariedade social e da justiça social (arts. 3º, I, e 170 da Constituição), que transformaram profundamente o paradigma individualista do Código Civil anterior.
Devemos esclarecer que é corrente no Brasil a terminologia alemã de cláusula geral, ora com significado semelhante ao de princípio, ora com significado mais restrito de valor ou conjunto de valores, cujo conteúdo se concretiza na aplicação da norma que a contém. Preferimos tratar as duas hipóteses como princípios, assumindo os riscos da generalização, como o faz Pontes de Miranda. Freqüentemente, ambas utilizam conceitos indeterminados, o que amplia a função de aplicação do direito e, consequentemente, a responsabilidade do aplicador. A preferência por princípios é crescente no direito atual, como se vê na denominação adotada na União Européia para o projeto de código unificado de direito contratual, da chamada Comissão Lando: "Princípios do Direito Contratual Europeu" (4). Neste caso, os princípios terão natureza dispositiva ou supletiva, podendo as partes integrá-los ou não ao contrato. No direito brasileiro, os princípios têm caráter normativo cogente, com primazia sobre a convenção das partes e integração necessária ao ato ou negócio jurídico, salvo se se tratar de contrato internacional, cuja lei nacional aplicável pode ser escolhida.

No Código Civil, os princípios assumem primazia, com enunciações freqüentes no conteúdo de suas regras, às vezes ao lado de conceitos indeterminados. Os conceitos indeterminados ( e. g.: "desproporção manifesta" e "valor real da prestação", do art. 317) complementam e explicitam o conteúdo das regras jurídicas, mas não têm autonomia normativa. Já os princípios são espécies de normas jurídicas, podendo ter enunciações autônomas ou estarem contidos como expressões nas regras. No art. 187, as expressões "fim econômico e social", "boa-fé" e "bons costumes" são princípios, pois o ato jurídico que exceder os limites por eles impostos será considerado ilícito e, consequentemente, nulo. Relativamente ao contrato, o Código Civil faz menção expressa à "função social do contrato" (art. 421) e, nesse ponto, foi mais incisivo que o Código de Defesa do Consumidor. Consagrou-se, definitivamente e pela primeira vez na legislação civil brasileira, a boa-fé objetiva, exigível tanto na conclusão quanto na execução do contrato (art. 422). A referência feita ao princípio da probidade é abundante uma vez que se inclui no princípio da boa-fé, como abaixo se demonstrará. No que toca ao princípio da equivalência material o Código o incluiu, de modo indireto, nos dois importantes artigos que disciplinam o contrato de adesão (arts. 423 e 424), ao estabelecer a interpretação mais favorável ao aderente (interpretatio contra stipulatorem) e ao declarar nula a cláusula que implique renúncia antecipada do contratante aderente a direito resultante da natureza do negócio (cláusula geral aberta, a ser preenchida pela mediação concretizadora do aplicador ou intérprete, caso a caso).

O Código de Defesa do Consumidor é uma lei eminentemente principiológica, com vasta utilização não só dos princípios mas de conceitos indeterminados. De seus variados dispositivos podem ser colhidos os princípios da transparência, da harmonia das relações de consumo, da vulnerabilidade do consumidor, da boa-fé, da segurança do consumidor, da equivalência material entre consumidores e fornecedores, da informação, de modificação de prestações desproporcionais, de revisão por onerosidade excessiva, de acesso à justiça, da responsabilidade solidária dos fornecedores do produto ou do serviço, da reparação objetiva, da interpretação favorável ao consumidor, da equidade. Desses princípios defluem direitos gerais de conduta correspondentes, nas relações jurídicas de consumo.

Os deveres gerais de conduta, ainda que incidam diretamente nas relações obrigacionais, independentemente da manifestação de vontade dos participantes, necessitam de concreção de seu conteúdo, em cada relação, considerados o ambiente social e as dimensões do tempo e do espaço de sua observância ou aplicação. Essa é sua característica, razão porque são insuscetíveis ao processo tradicional de subsunção do fato à norma jurídica, porque esta determina a obrigatoriedade da incidência da norma de conduta (por exemplo, a boa-fé) sem dizer o que ela é ou sem defini-la. A situação concreta é que fornecerá ao intérprete os elementos de sua concretização. Utilizando-se uma metáfora, é uma moldura com tela em branco, para que o conteúdo (a pintura) seja necessariamente concretizado dentro dos limites e condições que objetivamente se apresentem. Não se confunde com sentimentos ou juízos de valor subjetivos do intérprete, porque o conteúdo concreto é determinável em sentido objetivo, até com uso de catálogo de opiniões e lugares comuns (topoi) consolidados na doutrina e na jurisprudência, em situações semelhantes ou equivalentes. O lugar e o tempo são determinantes, pois o intérprete deve levar em conta os valores sociais dominantes na época e no espaço da concretização do conteúdo do dever de conduta. Não deve surpreender que o mesmo texto legal, em que se insere o princípio tutelar do dever de conduta, sofra variações de sentido ao longo do tempo.

2. DEVER DE BOA-FÉ OBJETIVA NAS OBRIGAÇÕES

A boa-fé objetiva é dever de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais, especialmente no contrato. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de conduta. Para Menezes Cordeiro (5), a confiança exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de atividade ou de crença, a certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efetivas. O princípio da confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e a sua tutela.

A boa-fé objetiva não é princípio dedutivo, não é argumentação dialética; é medida e diretiva para pesquisa da norma de decisão, da regra a aplicar no caso concreto, sem hipótese normativa pré-constituída (6), mas que será preenchida com a mediação concretizadora do intérprete-julgador. Cada relação obrigacional exige um juízo de valor extraído do ambiente social, considerados o momento e o lugar em que se realiza; mas esse juízo não é subjetivo, no sentido de se irradiar das convicções morais do intérprete. Como esclarece Larenz (7), deve ser tomado como módulo o pensamento de um intérprete justo e eqüitativo, isto é, "que a sentença há de ajustar-se à exigências geralmente vigentes da justiça, ao critério refletido na consciência do povo ou no setor social a que se vinculem os participantes (por exemplo, comerciantes, artesãos, agricultores)", desde que observados os valores de fidelidade e confiança.

O Código Civil estabelece, no art. 113, que "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". Essa regra é cogente, não podendo ser afastada pelas partes. Cada figurante (devedor ou credor) assume o dever próprio e em relação ao outro, de comportar-se com boa-fé, obrigatoriamente. Como se vê, vai além do simples dever anexo à prestação. Ao regular o abuso do direito, o art. 187 qualifica como ato ilícito, gerador de dever de indenizar, exercer o direito contrariamente à boa-fé. No art. 422 refere-se a ambos os contratantes do contrato comum civil ou mercantil, não podendo o princípio da boa-fé ser aplicado preferencialmente ao devedor, neste caso segundo a regra contida no art. 242 do Código Civil alemão. Nas relações de consumo, todavia, ainda que o inciso III do art. 4º do CDC cuide de aplicá-lo a consumidores e fornecedores, é a estes que ele se impõe, principalmente, em virtude da vulnerabilidade daqueles. Por exemplo, no que concerne à informação o princípio da boa-fé volta-se em grande medida ao dever de informar do fornecedor.

Além dos tipos legais expressos de cláusulas abusivas o Código de Defesa do Consumidor fixou a boa-fé como cláusula geral de abertura, que permite ao aplicador ou intérprete o teste de compatibilidade das cláusulas ou condições gerais dos contratos de consumo. No inciso IV do art. 51 a boa-fé, contudo, a boa-fé está associada ou alternada com a eqüidade ("... com a boa-fé ou a eqüidade"), a merecer consideração, adiante.

Por seu turno, o art. 422 do Código Civil de 2002 associou ao princípio da boa-fé o que denominou de princípio da probidade ("... os princípios da probidade e boa-fé"). No direito público a probidade constitui princípio autônomo da Administração Pública, previsto explicitamente no art. 37 da Constituição, como "princípio da moralidade" a que se subordinam todos agentes públicos. No direito contratual privado, todavia, a probidade é qualidade exigível sempre à conduta de boa-fé. Quando muito seria princípio complementar da boa-fé objetiva ao lado dos princípios da confiança, da informação e da lealdade. Pode dizer-se que não há boa-fé sem probidade.

A boa-fé não se confunde com o dever observância dos bons costumes, os quais têm sentido mais amplo de condutas socialmente aceitas, como tradução da moral comunitária dominante ao plano jurídico, que lhe empresta juridicidade. A boa-fé objetiva oferece dimensão mais específica, como dever de conduta dos participantes da relação obrigacional segundo fundamentos e padrões éticos. Sabe-se que a moral e as normas morais, existentes em cada comunidade, não se confundem com a ética, sublimada como padrões ideais de conduta. A moral extrai-se da realidade social, com suas contingências e vicissitudes (por isso, fala-se de moral cristã, moral burguesa, por exemplo), enquanto a ética é um dever ser otimizado, ideal, que orienta a conduta humana à máxima harmonia e perfectabilidade. Com risco de simplificação, dizemos que os bons costumes estão mais próximos da moral, e a boa-fé da ética.

2.1. Deveres pré e pós-contratuais

Questão relevante é o dos limites objetivos do princípio da boa-fé nos contratos. A melhor doutrina tem ressaltado que a boa-fé não apenas é aplicável à conduta dos contratantes na execução de suas obrigações mas aos comportamentos que devem ser adotados antes da celebração (in contrahendo) ou após a extinção do contrato (post pactum finitum). Assim, para fins do princípio da boa-fé objetiva são alcançados os comportamentos do contratante antes, durante e após o contrato. O Código de Defesa do Consumidor avançou mais decisivamente nessa direção, ao incluir na oferta toda informação ou publicidade suficientemente precisa (art. 30), ao impor o dever ao fornecedor de assegurar ao consumidor cognoscibilidade e compreensibilidade prévias do conteúdo do contrato (art. 46), ao tornar vinculantes os escritos particulares, recibos e pré-contratos (art. 48) e ao exigir a continuidade da oferta de componentes e peças de reposição, após o contrato de aquisição do produto (art. 32).

O Código Civil não foi tão claro em relação aos contratos comuns, mas, quando refere amplamente (art. 422) à conclusão e à execução do contrato, admite a interpretação em conformidade com o atual estado da doutrina jurídica acerca do alcance do princípio da boa fé aos comportamentos in contrahendo e post pactum finitum. A referência à conclusão deve ser entendida como abrangente da celebração e dos comportamentos que a antecedem, porque aquela decorre destes. A referência à execução deve ser também entendida como inclusiva de todos os comportamentos resultantes da natureza do contrato. Em suma, em se tratando de boa-fé, os comportamentos formadores ou resultantes de outros não podem ser cindidos.

Independentemente do alcance da norma codificada, o princípio geral da boa-fé obriga, aos que intervierem em negociações preliminares ou tratativas, o comportamento com diligência e consideração aos interesses da outra parte, respondendo pelo prejuízo que lhes causar. A relação jurídica pré-contratual submete-se à incidência dos deveres gerais de conduta. Construiu-se, no século XIX, remontando-se ao jurista alemão Ihering, a teoria da culpa in contrahendo, para imputar a quem deu causa à frustração contratual o dever de reparar, fundando-se na relação de confiança criada pela existência das negociações preliminares; nessa época de predomínio da culpa, procurou-se arrimo na responsabilidade civil extranegocial culposa, gerando pretensão de indenização. Larenz entende que não apenas procede a indenização do dano em favor da parte que tenha confiado na validade do contrato, mas todo dano que seja conseqüência da infração de um dever de diligência contratual, segundo o estado em que se acharia a outra parte se tivesse sido cumprido o dever de proteção, informação e diligência. Ou seja, na prática, a infração de dever de conduta pré-contratual deve ser regida pelos mesmos princípios da responsabilidade por infração dos deveres de conduta contratual (8). Nesta última direção, encaminha-se o direito positivo brasileiro, principalmente quanto aos efeitos da informação que antecede. O art. 30 do Código de Defesa do Consumidor estabelece que toda informação obriga o fornecedor e "integra o contrato que vier a ser celebrado". Portanto, os dados de informação que antecedem o contrato de consumo são partes integrantes deste, independentemente da vontade ou culpa das partes.

2.2. Dever de não agir contra o ato próprio

Entre tantas expressões derivadas do princípio da boa-fé pode ser destacado o dever de não agir contra o ato próprio. Significa dizer que a ninguém é dado valer-se de determinado ato, quando lhe for conveniente e vantajoso, e depois voltar-se contra ele quando não mais lhe interessar. Esse comportamento contraditório denota intensa má-fé, ainda que revestido de aparência de legalidade ou de exercício regular de direito. Nas obrigações revela-se, em muitos casos, como aproveitamento da própria torpeza, mas a incidência do dever não exige o requisito de intencionalidade.

Essa teoria radica no desenvolvimento do antigo aforismo venire contra factum proprium nulli conceditur, significando que a ninguém é licito fazer valer um direito em contradição com sua anterior conduta, quando esta conduta interpretada objetivamente segunda a lei, segundo os bons costumes e a boa-fé, justifica a conclusão que não se fará valer posteriormente o direito que com estes se choque. No direito anglo-americano é longa a tradição do instituto do estoppel, em razão do qual "uma parte é impedida em virtude de seus próprios atos de exigir um direito em detrimento da outra parte que confiou em tal conduta e se comportou em conformidade com ela" (9). A teoria encontra-se consolidada na doutrina e na jurisprudência. Puig Brutau sustenta que quem deu lugar a uma situação enganosa, ainda que sem intenção, não pode pretender que seu direito prevaleça sobre o de quem confiou na aparência originada naquela situação; esta aparência, afirma-se, deu lugar à crença da "verdade" de uma situação jurídica determinada (10).

O conteúdo desse dever é também versado doutrinariamente sob a denominação de teoria dos atos próprios, "que sanciona como inadmissível toda pretensão lícita mas objetivamente contraditória com respeito ao próprio comportamento anterior efetuado pelo mesmo sujeito". O fundamento radica na confiança despertada no outro sujeito de boa-fé, em razão da primeira conduta realizada. A boa-fé restaria vulnerada se fosse admissível aceitar e dar curso à pretensão posterior e contraditória. São requisitos: a) existência de uma conduta anterior, relevante e eficaz; b) exercício de um direito subjetivo pelo mesmo sujeito que criou a situação litigiosa devida à contradição existente entre as duas condutas; c) a identidade de sujeitos que se vinculam em ambas condutas (11). Já Anderson Schreiber, sob a ótica do direito brasileiro, considera como pressupostos de incidência da vedação de venire contra factum proprium: a) um factum proprium, isto é, uma conduta inicial; b) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; c)um comportamento contraditório com este sentido objetivo; d) um dano ou, no mínimo, um potencial de dano a partir da contradição (12).

O Código Civil de 2002, nos preceitos destinados ao lugar do adimplemento, introduziu norma (art. 330) cuja natureza corresponde ao dever de não contradizer o ato próprio: "O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato". Em outras palavras, o credor não pode fazer valer o estipulado no contrato contrariando a conduta que adotou, ao admitir que o adimplemento se fizesse em outro lugar, pois gerou a confiança do devedor que assim se manteria. Outra norma que realiza esse dever é o parágrafo único do art. 619, relativamente ao contrato de empreitada, mediante o qual o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca protestou; não pode prevalecer o contrato contrariando essa conduta assim consolidada.

A aplicação da teoria é ampla em situações variadas; no direito das obrigações podem ser referidas: a) quando uma parte, intencionalmente ou não, faz crer à outra que tal forma não é necessária, incorrendo em contradição com seus próprios atos quando, mais tarde, pretende amparar-se nesse defeito formal para não cumprir sua obrigação; b) quando, apesar da nulidade, uma parte considera válido o ato, dele se beneficiando, invocando a nulidade posteriormente por deixar de interessá-la; c) quando um fornecedor oferece bonificações nas prestações ajustadas, cancelando-as sem aviso prévio; d) quando uma parte aceita receber reiteradamente as prestações com alguns dias após o vencimento, sem cobrança de acréscimos convencionados para mora, passando a exigi-los posteriormente.
3. DEVER DE REALIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DAS OBRIGAÇÕES

O princípio da função social determina que os interesses individuais das partes do negócio sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles pois os interesses sociais são prevalecentes. Qualquer obrigação contratual repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.

Para Miguel Reale o contrato nasce de uma ambivalência, de uma correlação essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade. "O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida" (13).

No período do Estado liberal a inevitável dimensão social do contrato era desconsiderada para que não prejudicasse a realização individual, em conformidade com a ideologia constitucionalmente estabelecida; o interesse individual era o valor supremo, apenas admitindo-se limites negativos gerais de ordem pública e bons costumes, não cabendo ao Estado e ao direito considerações de justiça social.

A função exclusivamente individual do contrato é incompatível com o Estado social, caracterizado, sob o ponto de vista do direito, como já vimos, pela tutela explícita da ordem econômica e social na Constituição. O art. 170 da Constituição brasileira estabelece que toda a atividade econômica – e o contrato é o instrumento dela – está submetida à primazia da justiça social. Não basta a justiça comutativa que o liberalismo jurídico entendia como exclusivamente aplicável ao contrato (14). Enquanto houver ordem econômica e social haverá Estado social; enquanto houver Estado social haverá função social do contrato.

Com exceção da justiça social, a Constituição não se refere explicitamente à função social do contrato. Fê-lo em relação à propriedade, em várias passagens, como no art.170, quando condicionou o exercício da atividade econômica à observância do princípio da função social da propriedade. A propriedade é o segmento estático da atividade econômica, enquanto o contrato é seu segmento dinâmico. Assim, a função social da propriedade afeta necessariamente o contrato, como instrumento que a faz circular.

Tampouco o Código de Defesa do Consumidor o explicitou, mas não havia necessidade porquanto ele é a própria regulamentação da função social do contrato nas relações de consumo.

No Código Civil de 2002 a função social surge relacionada à "liberdade de contratar", como seu limite fundamental. A liberdade de contratar, ou autonomia privada, consistiu na expressão mais aguda do individualismo jurídico, entendida por muitos como o toque de especificidade do direito privado. São dois princípios antagônicos que exigem aplicação harmônica. No Código a função social não é simples limite externo ou negativo mas limite positivo, além de determinação do conteúdo da liberdade de contratar. Esse é o sentido que decorre dos termos "exercida em razão e nos limites da função social do contrato" (art. 421).

O princípio da função social é a mais importante inovação do direito contratual comum brasileiro e, talvez, a de todo o Código Civil. Os contratos que não são protegidos pelo direito do consumidor devem ser interpretados no sentido que melhor contemple o interesse social, que inclui a tutela da parte mais fraca no contrato, ainda que não configure contrato de adesão. Segundo o modelo do direito constitucional, o contrato deve ser interpretado em conformidade com o princípio da função social.

O princípio da função social do contrato harmoniza-se com a modificação substancial relativa à regra básica de interpretação dos negócios jurídicos introduzida pelo art. 112 do Código Civil de 2002, que abandonou a investigação da intenção subjetiva dos figurantes em favor da declaração objetiva, socialmente aferível, ainda que contrarie aquela.


4. DEVER DE EQUIVALÊNCIA MATERIAL DE DIREITOS E DEVERES

O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico pacta sunt servanda passou a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas.

No Código Civil o princípio teve introdução explícita nos contratos de adesão. Observe-se, todavia, que o contrato de adesão disciplinado pelo Código Civil tutela qualquer aderente, seja consumidor ou não, pois não se limita a determinada relação jurídica como a de consumo. Esse princípio abrange o princípio da vulnerabilidade jurídica de uma das partes contratantes, que o Código de Defesa do Consumidor destacou.
O princípio da equivalência material rompe a barreira de contenção da igualdade jurídica e formal, que caracterizou a concepção liberal do contrato. Ao juiz estava vedada a consideração da desigualdade real dos poderes contratuais ou o desequilíbrio de direitos e deveres, pois o contrato fazia lei entre as partes, formalmente iguais, pouco importando o abuso ou exploração da mais fraca pela mais forte.

O princípio da equivalência material desenvolve-se em dois aspectos distintos: subjetivo e objetivo. O aspecto subjetivo leva em conta a identificação do poder contratual dominante das partes e a presunção legal de vulnerabilidade. A lei presume juridicamente vulneráveis o trabalhador, o inquilino, o consumidor, o aderente de contrato de adesão, dentre outros. Essa presunção é absoluta, pois não pode ser afastada pela apreciação do caso concreto. O aspecto objetivo considera o real desequilíbrio de direitos e deveres contratuais que pode estar presente na celebração do contrato ou na eventual mudança do equilíbrio em virtude de circunstâncias supervenientes que levem a onerosidade excessiva para uma das partes.


5. DEVER DE EQUIDADE

A equidade, entendida como justiça do caso concreto, tem este como sua razão de ser, na contemplação das circunstâncias que o cercam; cada caso é um caso. O apelo à equidade é o reconhecimento pela própria lei de que a prestação pode ser injusta. Já Aristóteles, em lição sempre atual, dizia que a própria natureza da equidade é a retificação da lei onde esta se revela insuficiente pelo seu caráter universal, porque "a lei leva em consideração a maioria dos casos, embora não ignore a possibilidade de falha decorrente dessa circunstância" (15). Nesses casos a equidade intervém para julgar, não com base na lei, mas com base naquela justiça que a mesma lei deve realizar.

Durante o predomínio do individualismo jurídico, a equidade praticamente desapareceu do direito civil, principalmente do direito das obrigações, em virtude da concepção dominante de insular as relações privadas em campo imune à interferência do Estado ou dos interesses sociais. A aplicação da equidade, milenarmente construída como valor constituinte da justiça, envolve necessariamente a intervenção do juiz, que é o agente do Estado, e retomou sua força no Estado Social, desenvolvido desde as primeiras décadas do século XX, como etapa da evolução do Estado Moderno.

O juízo de eqüidade conduz o juiz às proximidades do legislador, porém limitado à decidibilidade do conflito determinado, na busca do equilíbrio dos poderes privados. Apesar de trabalhar com critérios objetivos, com standards valorativos, a eqüidade é entendida no referido sentido aristotélico da justiça do caso concreto. O juiz deve partir de critérios definidos referenciáveis em abstrato, socialmente típicos, conformando-os à situação concreta, mas não os podendo substituir por juízos subjetivos de valor.

O Código Civil determina explicitamente a formação do juízo de equidade, para solução de certas situações com potencialidade de conflito, o que obriga o juiz a buscar os elementos de decisão fora da simples e tradicional subsunção do fato à norma. São exemplos dessa viragem à equidade, aplicáveis ao direito das obrigações: a) se os juros de mora não cobrirem o prejuízo do credor, e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder eqüitativamente indenização suplementar (art. 404); b) se a pena civil ou cláusula penal for manifestamente excessiva, deve ser eqüitativamente reduzida pelo juiz (art. 413); c) se a obrigação do locatário pagar o aluguel pelo tempo que faltar, pelo fato de devolver a coisa antes do encerramento do contrato, for considerada excessiva, o juiz fixará a indenização "em bases razoáveis", ou seja, equitativamente (art. 572); d) se o aluguel arbitrado pelo locador, após notificado o locatário a restituir a coisa em razão do encerramento do prazo, for considerado manifestamente excessivo, poderá o juiz reduzi-lo (art. 575); e) se a prestação de serviços for feita por quem não possua título de habilitação, mas resultar benefício para a outra parte, o juiz atribuirá uma "compensação razoável", o que apenas será feito mediante a equidade (art. 606); f) se ocorrer diminuição do material ou da mão-de-obra superior a dez por cento do preço convencionado, no contrato de empreitada, poderá ser este revisto (art. 620); g) se as pessoas imputáveis pela reparação dos danos causados pelo incapaz não dispuserem de meios suficientes, o juiz fixará indenização equitativa que será respondida diretamente pelo incapaz, de modo a não privá-lo do necessário (art. 928); se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir eqüitativamente a indenização (art. 944).

O contrato pode estar submetido à arbitragem por opção das partes, seja mediante cláusula compromissória nele incluída, seja mediante específico contrato de compromisso (arts. 851 a 853 do Código Civil), subtraindo-se da administração regular de justiça ou do juiz de direito, para solução de eventuais conflitos. O art. 2º da Lei n. 9.307, de 1996 (que regula a arbitragem), estabelece que a arbitragem poderá ser de direito (definindo qual) ou de equidade, a critério das partes, e o art. 18 define o árbitro como juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou homologação do Poder Judiciário. Como juiz de fato, o árbitro decide segundo o largo alcance da equidade, sem se ater a qualquer norma de direito. Mas, ainda que as partes tenham vinculado a arbitragem a normas jurídicas, o dever geral de agir segundo a equidade integra o contrato.




6. DEVER DE INFORMAR

O direito à informação e o correspectivo dever de informar têm raiz histórica na boa-fé, mas adquiriram autonomia própria, ante a tendência crescente do Estado Social de proteção ou tutela jurídica dos figurantes vulneráveis das relações jurídicas obrigacionais. Indo além da equivalência jurídica meramente formal, o direito presume a vulnerabilidade jurídica daqueles que a experiência indicou como mais freqüentemente lesados pelo poder negocial dominante, tais como o trabalhador, o inquilino, o consumidor, o aderente. Nessas situações de vulnerabilidade, torna-se mais exigente o dever de informar daquele que se encontra em situação favorável no domínio das informações, de modo a compensar a deficiência do outro. O dever de informar é exigível antes, durante e após a relação jurídica obrigacional.

O ramo do direito que mais avançou nessa direção foi o direito do consumidor, cujo desenvolvimento aproveita a todo o direito privado. A concepção, a fabricação, a composição, o uso e a utilização dos produtos e serviços atingiu, em nossa era, elevados níveis de complexidade, especialidade e desenvolvimento científico e tecnológico cujo conhecimento é difícil ou impossível de domínio pelo consumidor típico, ao qual eles se destinam. A massificação do consumo, por outro lado, agravou o distanciamento da informação suficiente. Nesse quadro, é compreensível que o direito avance para tornar o dever de informar um dos esteios eficazes do sistema de proteção.

O dever de informar impõe-se a todos os que participam do lançamento do produto ou serviço, desde sua origem, inclusive prepostos e representantes autônomos. É dever solidário, gerador de obrigação solidária. Essa solidariedade passiva é necessária, como instrumento indispensável de eficaz proteção ao consumidor, para que ele não tenha de suportar o ônus desarrazoado de identificar o responsável pela informação, dentre todos os integrantes da respectiva cadeia econômica (produtor, fabricante, importador, distribuidor, comerciante, prestador do serviço). Cumpre-se o dever de informar quando a informação recebida pelo consumidor típico preencha os requisitos de adequação, suficiência e veracidade. Os requisitos devem estar interligados. A ausência de qualquer deles importa descumprimento do dever de informar.

A adequação diz com os meios de informação utilizados e com o respectivo conteúdo. Os meios devem ser compatíveis com o produto ou o serviço determinados e o consumidor destinatário típico. Os signos empregados (imagens, palavras, sons) devem ser claros e precisos, estimulantes do conhecimento e da compreensão. No caso de produtos, a informação deve referir à composição, aos riscos, à periculosidade. Maior cautela deve haver quando o dever de informar veicula-se por meio da informação publicitária, que é de natureza diversa. Tome-se o exemplo do medicamento. A informação da composição e dos riscos pode estar neutralizada pela informação publicitária contida na embalagem ou na bula impressa interna. Nessa hipótese, a informação não será adequada, cabendo ao fornecedor provar o contrário. A legislação de proteção do consumidor destina à linguagem empregada na informação especial cuidado. Em primeiro lugar, o idioma será o vernáculo. Em segundo lugar, os termos empregados hão de ser compatíveis com o consumidor típico destinatário. Em terceiro lugar, toda a informação necessária que envolva riscos ou ônus que devem ser suportados pelo consumidor será destacada, de modo a que "saltem aos olhos". Alguns termos em língua estrangeira podem ser empregados, sem risco de infração ao dever de informar, quando já tenham ingressado no uso corrente, desde que o consumidor típico com eles esteja familiarizado. No campo da informática, por exemplo, há universalização de alguns termos em inglês, cujas traduções são pouco expressivas, a exemplo do aparelho denominado mouse.

A suficiência relaciona-se com a completude e integralidade da informação. Antes do advento do direito do consumidor era comum a omissão, a precariedade, a lacuna, quase sempre intencionais, relativamente a dados ou referências não vantajosas ao produto ou serviço. A ausência de informação sobre prazo de validade de um produto alimentício, por exemplo, gera confiança no consumidor de que possa ainda ser consumido, enquanto que a informação suficiente permite-lhe escolher aquele que seja de fabricação mais recente. Situação amplamente divulgada pela imprensa mundial foi a das indústrias de tabaco que sonegaram informação, de seu domínio, acerca dos danos à saúde dos consumidores. Insuficiente é, também, a informação que reduz, de modo proposital, as conseqüências danosas pelo uso do produto, em virtude do estágio ainda incerto do conhecimento científico ou tecnológico.

A veracidade é o terceiro dos mais importantes requisitos do dever de informar. Considera-se veraz a informação correspondente às reais características do produto e do serviço, além dos dados corretos acerca de composição, conteúdo, preço, prazos, garantias e riscos. A publicidade não verdadeira, ou parcialmente verdadeira, é considerada enganosa e o direito do consumidor destina especial atenção a suas conseqüências.

Em determinadas obrigações o dever de informar é particularizado para um dos figurantes ou participantes. No Código Civil, por exemplo, o comprador, se o contrato contiver cláusula de preferência para o vendedor, tem o dever de a este informar do preço e das vantagens oferecidos por terceiro para adquirir a coisa, sob pena de responder por perdas e danos (art. 518); o locatário tem o dever de informar ao locador as turbações de terceiros, que se pretendam fundadas em direito (art. 569); o empreiteiro que se responsabilizar apenas pela mão-de-obra tem o dever de informar o dono da obra sobre a má qualidade ou quantidade do material, sob pena de perder a remuneração se a coisa perecer antes de entregue (art. 613); o mandante tem o dever de informar terceiros da revogação do mandato, sob pena de esta não produzir efeitos em relação àqueles (art. 686); o segurado tem o dever de informar à seguradora, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé (art. 769); o promitente na promessa de recompensa tem o dever de informar a revogação desta, utilizando a mesma publicidade, sob pena de cumprir o prometido (art. 856); o gestor de negócio tem o dever de informar o dono do negócio a gestão que assumiu, tanto que se possa fazê-lo, sob pena de responder até mesmo pelos casos fortuitos (art. 864). São todos deveres anexos à prestação, não se enquadrando no conceito de deveres gerais de conduta.

6.1. Dever de informar e efeito jurídico da publicidade

Décadas atrás, Jean Carbonnier levantara a necessidade da análise jurídica da publicidade, ao afirmar que "o estudo do contrato na nossa época não se deveria separar de um estudo da publicidade" (16). Para o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária, publicidade é "toda atividade destinada a estimular o consumo de bens e serviços, bem como promover instituições, conceitos e idéias" (17). Para atingir suas finalidades, a publicidade deve observar os princípios básicos de liberdade, identificação, veracidade, lealdade e ordem pública. Porém, há uma distinção qualitativa com a informação em sentido estrito. A publicidade tem por fito atrair e estimular o consumo, enquanto a informação visa a dotar o consumidor de elementos objetivos de realidade que lhe permitam conhecer os produtos e serviços e exercer suas escolhas. Sem embargo da distinção, ambas são espécies do gênero informação, incidindo o dever de informar. Até o advento e consolidação do direito do consumidor, a publicidade não gerava conseqüências jurídicas a quem dela se utilizasse ou mesmo abusasse. Entendia-se que era o preço a pagar ou a ser suportado pela sociedade, para o desenvolvimento das atividades econômicas, em favor do irrestrito princípio da livre iniciativa. Afirmava-se que era um dolus bonus, tolerado ou desconsiderado pelo direito, pois sua função era apenas a de estimular e atrair ao consumo. Mas, já se disse que "a evolução contemporânea do direito positivo, caracterizado pela proteção e informação dos consumidores, a regulamentação da publicidade, a força obrigatória dos documentos publicitários e o desenvolvimento da obrigação de informar, parece deixar um lugar muito reduzido ao ‘dolus bonus’" (18). No nosso entendimento, não há mais lugar algum ao dolus bonus.

Para realizar o direito fundamental à informação, o direito do consumidor toma a publicidade sob dois aspectos: no primeiro, a publicidade preenche os requisitos de adequação, suficiência e veracidade, considerando-a lícita; no segundo, a publicidade ultrapassa limites positivos e negativos estabelecidos na lei, para defesa do consumidor, tornando-a ilícita. A publicidade ilícita é enganosa quando divulga o que não corresponde ao produto ou serviço, induzindo em erro; é abusiva quando discrimina pessoas e grupos sociais ou agride outros valores morais. A publicidade ilícita não produz efeitos em face do consumidor, que pode resolver o contrato por esse fundamento. A Constituição portuguesa (art. 60º) proibe todas as formas de publicidade oculta ou indireta. Do mesmo modo, a Lei de Defesa dos Consumidores portuguesa rejeita a publicidade que não seja inequivocamente identificada e desrespeite a verdade e os direitos dos consumidores. O sentido de "inequivocamente identificada" resulta em tornar ilícito o merchandising. Considera-se merchandising a aparição ou inserção camuflada de produtos em programas de televisão, rádio, em filmes, em espetáculos teatrais, sem indicação da natureza de mensagem publicitária. No direito brasileiro não é clara a proibição, havendo entendimento doutrinário de sua possível admissibilidade, desde que seja adaptada ao princípio da identificação (19). Pensamos, ao contrário, que não preenche o requisito de adequação do dever informar, porque não utiliza a transparência na publicidade, alcançando o consumidor de surpresa e de modo subliminar.

6.2. Dever de informar e garantia de cognoscibilidade

O direito fundamental à informação visa à concreção das possibilidades objetivas de conhecimento e compreensão, por parte do consumidor típico, destinatário do produto ou do serviço. Cognoscível é o que pode ser conhecido e compreendido pelo consumidor. Não se trata de fazer com que o consumidor conheça e compreenda efetivamente a informação, mas deve ser desenvolvida uma atividade razoável que o permita e o facilite. É um critério geral de apreciação das condutas em abstrato, levando-se em conta o comportamento esperado do consumidor típico em circunstâncias normais. Ao fornecedor incumbe prover os meios para que a informação seja conhecida e compreendida.

A cognoscibilidade abrange não apenas o conhecimento (poder conhecer) mas a compreensão (poder compreender). Conhecer e compreender não se confundem com aceitar e consentir. Não há declaração de conhecer. O consumidor nada declara. A cognoscibilidade tem caráter objetivo; reporta-se à conduta abstrata. O consumidor em particular pode ter conhecido e não compreendido, ou ter conhecido e compreendido. Essa situação concreta é irrelevante. O que interessa é ter podido conhecer e podido compreender, ele e qualquer outro consumidor típico destinatário daquele produto ou serviço. A declaração de ter conhecido ou compreendido as condições gerais ou as cláusulas contratuais gerais não supre a exigência legal e não o impede de pedir judicialmente a ineficácia delas. Ao julgador compete verificar se a conduta concreta guarda conformidade com a conduta abstrata tutelada pelo direito.

Pretende-se com a garantia de cognoscibilidade facilitar ao consumidor a única opção que se lhe coloca nos contratos de consumo massificados, notadamente quando submetidos a condições gerais, isto é, "pegar ou largar" ou avaliar os custos e benefícios em bloco, uma vez que não tem poder contratual para modificar ou negociar os termos e o conteúdo contratual. O Código do Consumidor brasileiro (arts 46 e 54) estabelece que os contratos de consumo não serão eficazes, perante os consumidores, "se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo", ou houver dificuldade para compreensão de seu sentido e alcance, ou se não forem redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, ou se não forem redigidos com destaque, no caso de limitação de direitos.

Todas essas hipóteses legais configuram elementos de cognoscibilidade, situando-se no plano da eficácia, vale dizer, sua falta acarreta a ineficácia jurídica, ainda que não haja cláusula abusiva (plano da validade). Os contratos existem juridicamente, são válidos mas não são eficazes. O direito do consumidor, portanto, desenvolveu peculiar modalidade de eficácia jurídica, estranha ao modelo tradicional do contrato. No lugar do consentimento, desponta a cognoscibilidade, como realização do dever de informar.


7. DEVER DE COOPERAÇÃO

Tradicionalmente, a obrigação, especialmente o contrato, foi considerada composição de interesses antagônicos, do credor de um lado, do devedor de outro. Por exemplo, o interesse do comprador seria antagônico ao interesse do vendedor. Tal esquema era adequado ao individualismo liberal, mas é inteiramente inapropriado à realização do princípio constitucional da solidariedade, sob o qual a obrigação é tomada como um todo dinâmico, processual, e não apenas como estrutura relacional de interesses individuais. O antagonismo foi substituído pela cooperação, tido como dever de ambos os participantes e que se impõe aos terceiros, como vimos na tutela externa do crédito. Revela-se a importância não apenas da abstenção de condutas impeditivas ou inibitórias, mas das condutas positivas que facilitem a prestação do devedor. O dever de cooperação é mais exigente nas hipóteses de relações obrigacionais duradouras.

Perlingieri ressalta que "a obrigação não se identifica no direito ou nos direitos do credor; ela configura-se cada vez mais como uma relação de cooperação". Isso implica mudança radical de perspectiva: a obrigação deixa de ser considerada estatuto do credor, pois "a cooperação, e um determinado modo de ser, substitui a subordinação e o credor se torna titular de obrigações genéricas ou específicas de cooperação ao adimplemento do devedor" (20).

Ainda que não distinga os deveres gerais de conduta (salvo quando se refere à boa-fé) dos que denomina deveres acessórios de conduta, reconhece Antunes Varela que estes tanto recaem sobre o devedor como afetam o credor, "a quem incumbe evitar que a prestação se torne desnecessariamente mais onerosa para o obrigado e proporcionar ao devedor a cooperação de que ele razoavelmente necessite, em face da relação obrigacional, para realizar a prestação devida" (21). Entendemos, porém, que a cooperação não é efeito secundário dos deveres acessórios, mas ela própria dever geral de conduta que transcende a prestação devida para determinar a obrigação como um todo.

O dever de cooperação resulta em questionamento da estrutura da obrigação, uma vez que, sem alterar a relação de crédito e débito, impõe prestações ao credor enquanto tal. Assim, há dever de cooperação tanto do credor quanto do devedor, para o fim comum. Há prestações positivas, no sentido de agirem os participantes de modo solidário para a consecução do fim obrigacional, e há prestações negativas, de abstenção de atos que dificultem ou impeçam esse fim.

Em certas obrigações o dever de cooperação é mais ressaltado, especialmente quanto ao credor. Orlando Gomes, referindo-se a Von Tuhr, demonstra que em algumas "é indispensável a prática de atos preparatórios, sem os quais o devedor ficaria impedido de cumprir a obrigação" citando o exemplo clássico da escolha do credor nas obrigações alternativas. Se o credor se nega a praticar o ato preparatório, torna-se responsável pelo retardamento no cumprimento da obrigação (22).

NOTAS

1 LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Trad. Jaime Santos Briz. Madrid: ERDP,1958, p. 22.

2 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1986, p. 117.

3 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p. 603-31.

4 Cf. HARTKAMP, Arthur. The principles of european contract law. Stvdia ivridica: colloquia 8. Coimbra, n. 64, p. 53-58, 2002.

5 CORDEIRO, 1997, p. 1.234.

6 MENGONI, Luigi. Spunti per una teoria delle clausule generali. In: Il principio de buena fede. Francesco D. Busnelli (Coord.). Milano: Giuffrè, 1987, p. 10.

7 LARENZ, 1958, p. 143.

8 LARENZ, 1958, p. 110.

9 BLACK, Henry Campbell. Black’s law dictionary. St. Paul: West Publishing, 1990, verbete estoppel.

10 PUIG BRUTAU, José. Estudios de derecho comparado: la doctrina de los actos proprios. Barcelona: Ediciones Ariel, 1951, p. 102.

11 BORDA, Alejandro. La teoria de los actos proprios. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1993, p. 12.

12 SCHREIBER, Andrson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 271.

13 REALE, Miguel. O projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 10.

14 Não é por acaso que um dos maiores teóricos do neoliberalismo, Frederick Hayeck, entende que a justiça social é o principal obstáculo a ser removido. Em visão profundamente individualista, diz que "ao contrário do socialismo, deve ser dito que o liberalismo se dedica à justiça comutativa, porém não àquilo que se denomina justiça distributiva ou, mais recentemente, justiça ‘social’". Para ele, em uma ordem econômica baseada no mercado, o conceito de justiça social não tem sentido, nem conteúdo. No jogo econômico, somente a conduta dos jogadores pode ser justa, não o resultado. HAYECK, Frederick. Liberalismo: Palestras e Trabalhos. Trad. Karin Strauss, São Paulo: Centro de Estudos Políticos e Sociais, 1994, p. 51.

15 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário de Gama Cury. Brasília: Ed.UnB, 1995, p. 109.

16 CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 6ª edição. Paris: LGDJ, 1988, p. 273.

17 A diretiva européia nº 84/450/CEE define a publicidade como "qualquer forma de comunicação feita no âmbito de uma atividade comercial, artesanal ou liberal tendo por fim promover o fornecimento de bens ou de serviços, incluindo os bens imóveis, os direitos e as obrigações".

18 GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil: la formation du contrat. 3ª edição. Paris: LGDJ, 1993, p. 534.

19 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. in Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Ada Pellegrini Grinover et al. (Coord.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 266.

20 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 212.

21 VARELA, 1986, p. 119.

22 GOMES, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 102.

STF proíbe Poder Público de coagir contribuintes

Livre atividade econômica
STF proíbe Poder Público de coagir contribuintes

O governo não pode impedir uma atividade empresarial ou profissional alegando débito tributário do contribuinte. A regra é válida para as esferas municipais, estaduais e federal. O entendimento é do Supremo Tribunal Federal, que atendeu pedido da Varig contra norma que proibia a impressão de notas fiscais por empresas devedoras de ICMS à Fazenda de Santa Catarina. O julgamento foi por 10 X 1 -- o ministro Eros Grau foi voto vencido.

A decisão do STF foi baseada na garantia do livre exercício do trabalho, ofício ou profissão, (inciso III, do artigo 5º da CF) e de qualquer atividade econômica (artigo 170, parágrafo único). Os ministros declararam a regra que regulamenta o ICMS em Santa Catarina inconstitucional.

De acordo com o voto do ministro Celso de Mello, o direito do estado de tributar não pode exceder direitos de caráter fundamental do contribuinte, como a prática da livre atividade empresarial, econômica ou profissional -- não existe no sistema jurídico brasileiro direitos e garantias impregnados de caráter absoluto.

Para ele, o “Estado não pode valer-se de meios indiretos de coerção, convertendo-os em instrumentos de acertamento da relação tributária, para, em função deles -- e mediante interdição ou grave restrição ao exercício da atividade empresarial, econômica ou profissional -- constranger o contribuinte a adimplir obrigações fiscais eventualmente em atraso”.

Para o ministro Marco Aurélio, relator da matéria, "não é lícito que a autoridade proíba que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais". Segundo ele, a restrição da confecção das notas fiscais inviabilizaria o exercício da atividade comercial da Varig, tendo em vista que a empresa poderia obter apenas notas fiscais individuais.

“A decisão é um veto judicial à práticas arbitrárias contra devedores inadimplentes da administração tributária”, afirmou Celso de Mello.

Leia a íntegra do voto

17/03/2005

TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 413.782-8 SANTA CATARINA

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O litígio em causa revela-se impregnado de inquestionável relevo jurídico. É que fez instaurar, na presente sede recursal extraordinária, discussão em torno da possibilidade constitucional de o Poder Público impor restrições, ainda que fundadas em lei, destinadas a compelir o contribuinte inadimplente a pagar o tributo e que culminam, quase sempre, em decorrência do caráter gravoso e indireto da coerção utilizada pelo Estado, por inviabilizar o exercício, pela empresa devedora, de atividade econômica lícita.

No caso ora em análise, põe-se em destaque o exame da legitimidade constitucional de exigência estatal que erigiu a prévia satisfação de débito tributário em requisito necessário à outorga, pelo Poder Público, de autorização para a impressão de documentos fiscais.

Cabe acentuar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, tendo presentes os postulados constitucionais que asseguram a livre prática de atividades econômicas lícitas (CF, art. 170, parágrafo único), de um lado, e a liberdade de exercício profissional (CF, art. 5º, XIII), de outro - e considerando, ainda, que o Poder Público dispõe de meios legítimos que lhe permitem tornar efetivos os créditos tributários -, firmou orientação jurisprudencial, hoje consubstanciada em enunciados sumulares (Súmulas 70, 323 e 547), no sentido de que a imposição, pela autoridade fiscal, de restrições de índole punitiva, quando motivada tal limitação pela mera inadimplência do contribuinte, revela-se contrária às liberdades públicas ora referidas (RTJ 125/395, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI).

Esse entendimento - cumpre enfatizar - tem sido observado em sucessivos julgamentos proferidos por esta Suprema Corte, quer sob a égide do anterior regime constitucional, quer em face da vigente Constituição da República (RTJ 33/99, Rel. Min. EVANDRO LINS - RTJ 45/859, Rel. Min. THOMPSON FLORES - RTJ 47/327, Rel. Min. ADAUCTO CARDOSO - RTJ 73/821, Rel. Min. LEITÃO DE ABREU - RTJ 100/1091, Rel. Min. DJACI FALCÃO - RTJ 111/1307, Rel. Min. MOREIRA ALVES - RTJ 115/1439, Rel. Min. OSCAR CORREA - RTJ 138/847, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - RTJ 177/961, Rel. Min. MOREIRA ALVES - RE 111.042/SP, Rel. Min. CARLOS MADEIRA, v.g.):

“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS: REGIME ESPECIAL. RESTRIÇÕES DE CARÁTER PUNITIVO. LIBERDADE DE TRABALHO. CF/67, art. 153, § 23; CF/88, art. 5º, XIII.
I. - Regime especial de ICM, autorizado em lei estadual: restrições e limitações, nele constantes, à atividade comercial do contribuinte, ofensivas à garantia constitucional da liberdade de trabalho (CF/67, art. 153, § 23; CF/88, art. 5º, XIII), constituindo forma oblíqua de cobrança do tributo, assim execução política, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sempre repeliu (Súmulas nºs 70, 323 e 547).

“II. - Precedente do STF: ERE 115.452-SP, Velloso, Plenário, 04.l0.90, ‘DJ’ de 16.11.90.

“III. - RE não admitido. Agravo não provido.”
(RE 216.983-AgR/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - grifei)

É certo – consoante adverte a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal - que não se reveste de natureza absoluta a liberdade de atividade empresarial, econômica ou profissional, eis que inexistem, em nosso sistema jurídico, direitos e garantias impregnados de caráter absoluto:

“OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO.
Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição.

“O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.”
(RTJ 173/807-808, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

A circunstância de não se revelarem absolutos os direitos e garantias individuais proclamados no texto constitucional não significa que a Administração Tributária possa frustrar o exercício da atividade empresarial ou profissional do contribuinte, impondo-lhe exigências gravosas, que, não obstante as prerrogativas extraordinárias que (já) garantem o crédito tributário, visem, em última análise, a constranger o devedor a satisfazer débitos fiscais que sobre ele incidam.

O fato irrecusável, nesta matéria, como já evidenciado pela própria jurisprudência desta Suprema Corte, é que o Estado não pode valer-se de meios indiretos de coerção, convertendo-os em instrumentos de acertamento da relação tributária, para, em função deles - e mediante interdição ou grave restrição ao exercício da atividade empresarial, econômica ou profissional - constranger o contribuinte a adimplir obrigações fiscais eventualmente em atraso.

Esse comportamento estatal - porque arbitrário e inadmissível - também tem sido igualmente censurado por autorizado magistério doutrinário (HUGO DE BRITO MACHADO, “Sanções Políticas no Direito Tributário”, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 30, p. 46/47):

“Em Direito Tributário a expressão sanções políticas corresponde a restrições ou proibições impostas ao contribuinte, como forma indireta de obrigá-lo ao pagamento do tributo, tais como a interdição do estabelecimento, a apreensão de mercadorias, o regime especial de fiscalização, entre outras.

“Qualquer que seja a restrição que implique cerceamento da liberdade de exercer atividade lícita é inconstitucional, porque contraria o disposto nos artigos 5º, inciso XIII, e 170, parágrafo único, do Estatuto Maior do País.
...................................................
“São exemplos mais comuns de sanções políticas a apreensão de mercadorias sem que a presença física destas seja necessária para a comprovação do que o fisco aponta como ilícito; o denominado regime especial de fiscalização; a recusa de autorização para imprimir notas fiscais; a inscrição em cadastro de inadimplentes com as restrições daí decorrentes; a recusa de certidão negativa de débito quando não existe lançamento consumado contra o contribuinte; a suspensão e até o cancelamento da inscrição do contribuinte no respectivo cadastro, entre muitos outros.

“Todas essas práticas são flagrantemente inconstitucionais, entre outras razões, porque: a) implicam indevida restrição ao direito de exercer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, assegurado pelo art. 170, parágrafo único, da vigente Constituição Federal; e b) configuram cobrança sem o devido processo legal, com grave violação do direito de defesa do contribuinte, porque a autoridade que a este impõe a restrição não é a autoridade competente para apreciar se a exigência é ou não legal.” (grifei)

Cabe referir, a propósito da controvérsia suscitada no recurso extraordinário em questão - recusa de autorização estatal para impressão de notas fiscais -, a lição de EDISON FREITAS DE SIQUEIRA, em obra monográfica que versou o tema das chamadas “sanções políticas” impostas ao contribuinte inadimplente (“Débito Fiscal - análise crítica e sanções políticas”, p. 61/62, item 2.3, 2001, Sulina):

“Portanto, emerge incontroverso o fato de que uma empresa, para que possa exercer suas atividades, necessita de sua inscrição estadual, bem como de permanente autorização da expedição de notas fiscais, sendo necessário obter nas Secretarias da Fazenda de cada estado da federação onde vendam seus produtos, o respectivo reconhecimento de direito à utilização de sistemas especiais de arrecadação, bem como na transferência de créditos acumulados, além da obtenção da respectiva Autorização para Impressão de Documentos Fiscais (AIDF) , em paralelo às notas fiscais.
Salienta-se que qualquer ação contrária do Estado, quanto à concessão e reconhecimento dos direitos inerentes às questões no parágrafo anterior referendadas, constitui ‘sanção política’, medida despótica e própria de ditadores, porque subverte o sistema legal vigente.
Nesse sentido, vale tecer algumas considerações do efetivo SIGNIFICADO DA NOTA FISCAL para uma empresa ou profissional que mantenha a atividade lícita ‘trabalho’, até porque, o instrumento alternativo posto à disposição do contribuinte, notas fiscais avulsas, é situação equivalente à marginalidade, além de tratar-se de meio absolutamente inviável a uma atividade econômica significativa (volumosa).
A importância da nota fiscal ou AIDF para o desenvolvimento das atividades comerciais de uma empresa seja ela de indústria ou comércio, decorre do fato de que somente por meio destas é que se torna possível oficializar e documentar operações de circulação de mercadorias, a ponto de que sem essas, a circulação de mercadoria é atividade ilícita, punível, inclusive, com a respectiva apreensão das mesmas.
Neste sentido, revela-se, pois, totalmente imprópria à figura da nota fiscal avulsa, solução muito justificada por fiscais de ICMS e Procuradores de Estado em audiências que solicitam ao Poder Judiciário, mas que, na prática, constitui artimanha muito maliciosa que só serve para prejudicar o contribuinte, em circunstância totalmente defesa em lei, como adiante ficará elucidado.
Não raro, a fiscalização aponta, como recurso em situações de desagrado ao contribuinte, o uso das chamadas ‘notas fiscais avulsas’. Fazem-no, por certo, por desconhecimento de toda a gama de obtusa burocracia que envolve a sua expedição, ou pretendendo iludir os órgãos do Poder Judiciário, caso esses sejam chamados a impor ‘poder de controle’ contra exacerbação do exercício do poder de tributar, por parte do Poder Executivo.” (grifei)

Cumpre assinalar, por oportuno, que essa percepção do tema, prestigiada pelo saudoso e eminente Ministro ALIOMAR BALEEIRO ( “Direito Tributário Brasileiro”, p. 878/880, item n. 2, 11ª ed., atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi, 1999, Forense), é também compartilhada por autorizado magistério doutrinário que põe em destaque, no exame dessa matéria, o direito do contribuinte ao livre exercício de sua atividade profissional ou econômica, cuja prática legítima – qualificando-se como limitação material ao poder do Estado – inibe a Administração Tributária, em face do postulado que consagra a proibição de excesso (RTJ 176/578-580, Rel. Min. CELSO DE MELLO), de impor, ao contribuinte inadimplente, restrições que configurem meios gravosos e irrazoáveis destinados a constranger, de modo indireto, o devedor a satisfazer o crédito tributário (HUMBERTO BERGMANN ÁVILA, “Sistema Constitucional Tributário”, p. 324 e 326, 2004, Saraiva; SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO, “Infração Tributária e Sanção”, in “Sanções Administrativas Tributárias”, p. 420/444, 432, 2004, Dialética/ICET; HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO, “Processo Tributário”, p. 93/95, item n. 2.7, 2004, Atlas; RICARDO LOBO TORRES, “Curso de Direito Financeiro e Tributário”, p. 270, item n. 7.1, 1995, Renovar, v.g.).

A censura a esse comportamento inconstitucional, quando adotado pelo Poder Público em sede tributária, foi registrada, com extrema propriedade, em precisa lição, por HELENILSON CUNHA PONTES (“O Princípio da Proporcionalidade e o Direito Tributário”, p. 141/143, item n. 2.3, 2000, Dialética):

“O princípio da proporcionalidade, em seu aspecto necessidade, torna inconstitucional também grande parte das sanções indiretas ou políticas impostas pelo Estado sobre os sujeitos passivos que se encontrem em estado de impontualidade com os seus deveres tributários. Com efeito, se com a imposição de sanções menos gravosas, e até mais eficazes (como a propositura de medida cautelar fiscal e ação de execução fiscal), pode o Estado realizar o seu direito à percepção da receita pública tributária, nada justifica validamente a imposição de sanções indiretas como a negativa de fornecimento de certidões negativas de débito, ou inscrição em cadastro de devedores, o que resulta em sérias e graves restrições ao exercício da livre iniciativa econômica, que vão da impossibilidade de registrar atos societários nos órgãos do Registro Nacional do Comércio até a proibição de participar de concorrências públicas.
O Estado brasileiro, talvez em exemplo único em todo o mundo ocidental, exerce, de forma cada vez mais criativa, o seu poder de estabelecer sanções políticas (ou indiretas), objetivando compelir o sujeito passivo a cumprir o seu dever tributário. Tantas foram as sanções tributárias indiretas criadas pelo Estado brasileiro que deram origem a três Súmulas do Supremo Tribunal Federal.
Enfim, sempre que houver a possibilidade de se impor medida menos gravosa à esfera jurídica do indivíduo infrator, cujo efeito seja semelhante àquele decorrente da aplicação de sanção mais limitadora, deve o Estado optar pela primeira, por exigência do princípio da proporcionalidade em seu aspecto necessidade.
...................................................
As sanções tributárias podem revelar-se inconstitucionais, por desatendimento à proporcionalidade em sentido estrito (...),quando a limitação imposta à esfera jurídica dos indivíduos, embora arrimada na busca do alcance de um objetivo protegido pela ordem jurídica, assume uma dimensão que inviabiliza o exercício de outros direitos e garantias individuais, igualmente assegurados pela ordem constitucional.
...................................................
Exemplo de sanção tributária claramente desproporcional em sentido estrito é a interdição de estabelecimento comercial ou industrial motivada pela impontualidade do sujeito passivo tributário relativamente ao cumprimento de seus deveres tributários. Embora contumaz devedor tributário, um sujeito passivo jamais pode ver aniquilado completamente o seu direito à livre iniciativa em razão do descumprimento do dever de recolher os tributos por ele devidos aos cofres públicos. O Estado deve responder à impontualidade do sujeito passivo com o lançamento e a execução céleres dos tributos que entende devidos, jamais com o fechamento da unidade econômica.
Neste sentido, revelam-se flagrantemente inconstitucionais as medidas aplicadas, no âmbito federal, em conseqüência da decretação do chamado ‘regime especial de fiscalização’. Tais medidas, pela gravidade das limitações que impõem à livre iniciativa econômica, conduzem à completa impossibilidade do exercício desta liberdade, negligenciam, por completo, o verdadeiro papel da fiscalização tributária em um Estado Democrático de Direito e ignoram o entendimento já consolidado do Supremo Tribunal Federal acerca das sanções indiretas em matéria tributária. Esta Corte, aliás, rotineiramente afasta os regimes especiais de fiscalização, por considerá-los verdadeiras sanções indiretas, que se chocam frontalmente com outros princípios constitucionais, notadamente com a liberdade de iniciativa econômica.” (grifei)

É por essa razão que EDUARDO FORTUNATO BIM, em excelente trabalho dedicado ao tema ora em análise (“A Inconstitucionalidade das Sanções Políticas Tributárias no Estado de Direito: Violação ao ‘Substantive Due Process of Law’ (Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade)” in “Grandes Questões Atuais do Direito Tributário”, vol. 8/67-92, 83, 2004, Dialética), conclui, com indiscutível acerto, “que as sanções indiretas afrontam, de maneira autônoma, cada um dos subprincípios da proporcionalidade, sendo inconstitucionais em um Estado de Direito, por violarem não somente este, mais ainda o ‘substantive due process of law’” (grifei) .

Cabe relembrar, neste ponto, consideradas as referências doutrinárias que venho de expor, a clássica advertência de OROSIMBO NONATO, consubstanciada em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (RE 18.331/SP), em acórdão no qual aquele eminente e saudoso Magistrado acentuou, de forma particularmente expressiva, à maneira do que já o fizera o Chief Justice JOHN MARSHALL, quando do julgamento, em 1819, do célebre caso “McCulloch v. Maryland”, que “o poder de tributar não pode chegar à desmedida do poder de destruir” (RF 145/164 – RDA 34/132), eis que – como relembra BILAC PINTO, em conhecida conferência sobre “Os Limites do Poder Fiscal do Estado” (RF 82/547-562, 552) - essa extraordinária prerrogativa estatal traduz, em essência, “um poder que somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o direito de propriedade” (grifei).

Daí a necessidade de rememorar, sempre, a função tutelar do Poder Judiciário, investido de competência institucional para neutralizar eventuais abusos das entidades governamentais, que, muitas vezes deslembradas da existência, em nosso sistema jurídico, de um “estatuto constitucional do contribuinte”, consubstanciador de direitos e garantias oponíveis ao poder impositivo do Estado (Pet 1.466/PB, Rel. Min. CELSO DE MELLO, in “Informativo STF” nº 125), culminam por asfixiar, arbitrariamente, o sujeito passivo da obrigação tributária, inviabilizando-lhe, injustamente, o exercício de atividades legítimas, o que só faz conferir permanente atualidade às palavras do Justice Oliver Wendell Holmes, Jr. (“The power to tax is not the power to destroy while this Court sits”), em “dictum” segundo o qual, em livre tradução, “o poder de tributar não significa nem envolve o poder de destruir, pelo menos enquanto existir esta Corte Suprema”, proferidas, ainda que como “dissenting opinion”, no julgamento, em 1928, do caso “Panhandle Oil Co. v. State of Mississippi Ex Rel. Knox” (277 U.S. 218).

Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conteúdo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do “substantive due process of law” (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 160/140-141 – RTJ 178/22-24, v.g.):

“O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público.
O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.
A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV).
Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador.”
(RTJ 176/578-580, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Em suma: a prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental, constitucionalmente assegurados ao contribuinte, pois este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos por este editados.
A análise dos autos evidencia que o acórdão emanado do E. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina diverge da orientação prevalecente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (RE 409.956/RS, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - RE 409.958/RS, Rel. Min. GILMAR MENDES - RE 414.714/RS, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - RE 424.061/RS, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RE 434.987/RS, Rel. Min. CEZAR PELUSO, v.g. ).

Assinalo, por oportuno, que tive o ensejo de reafirmar essa mesma orientação jurisprudencial, em recentíssima decisão proferida a respeito de controvérsia idêntica à que ora se examina nesta sede recursal extraordinária:

“SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO. INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DE MEIOS GRAVOSOS E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTATAL DESTINADOS A COMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF). RESTRIÇÕES ESTATAIS, QUE, FUNDADAS EM EXIGÊNCIAS QUE TRANSGRIDEM OS POSTULADOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO, CULMINAM POR INVIABILIZAR, SEM JUSTO FUNDAMENTO, O EXERCÍCIO, PELO SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA, DE ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL LÍCITA. LIMITAÇÕES ARBITRÁRIAS QUE NÃO PODEM SER IMPOSTAS PELO ESTADO AO CONTRIBUINTE EM DÉBITO, SOB PENA DE OFENSA AO ‘SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW’. IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE O ESTADO LEGISLAR DE MODO ABUSIVO OU IMODERADO (RTJ 160/140-141 – RTJ 173/807-808 – RTJ 178/22-24). O PODER DE TRIBUTAR – QUE ENCONTRA LIMITAÇÕES ESSENCIAIS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL, INSTITUÍDAS EM FAVOR DO CONTRIBUINTE – ‘NÃO PODE CHEGAR À DESMEDIDA DO PODER DE DESTRUIR’ (MIN. OROSIMBO NONATO, RDA 34/132). A PRERROGATIVA ESTATAL DE TRIBUTAR TRADUZ PODER CUJO EXERCÍCIO NÃO PODE COMPROMETER A LIBERDADE DE TRABALHO, DE COMÉRCIO E DE INDÚSTRIA DO CONTRIBUINTE. A SIGNIFICAÇÃO TUTELAR, EM NOSSO SISTEMA JURÍDICO, DO ‘ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO CONTRIBUINTE’. DOUTRINA. PRECEDENTES. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO.”
(RE 402.769/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Sendo assim, e com estas considerações, peço vênia para acompanhar o douto voto do eminente Ministro MARCO AURÉLIO e, em conseqüência, conhecer e dar provimento ao presente recurso extraordinário.

É o meu voto.

A controvérsia sobre a única resposta correta

A controvérsia sobre a única resposta correta.
A réplica de Dworkin às críticas positivistas

Flávio Quinaud Pedron
mestrando em Direito Constitucional na UFMG, monitor de Pós-Graduação nas disciplinas Teoria da Constituição e Teoria Geral do Direito Público, bolsista pelo CNPq


O presente artigo é dedicado aos professores Menelick de Carvalho Netto e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, em agradecimento pelo sempre constante estímulo à reflexão do direito.

Sumário: Considerações Iniciais; A Primeira Versão; A Segunda Versão; Referências Bibliográficas.

Resumo: O presente trabalho destina-se a reconstruir a argumentação tecida por Ronald Dworkin em sua réplica aos juristas positivistas, que refutavam a sua tese de que para cada caso controverso apenas existiria apenas uma única resposta correta, não sendo possível se falar em espaço de discricionariedade no qual o magistrado fosse livre para criar uma norma e aplicá-la retroativamente ao caso concreto.

Palavras-Chaves: Decisão Judicial, Discricionariedade, Deontologia.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS.

No ensaio "Não existe mesmo nenhuma resposta certa em casos controversos?",publicado como o capítulo 5 da obra Uma Questão de Princípio, Dworkin revisita a discussão travada com os positivistas jurídicos no texto anterior, em torno da possibilidade de uma resposta correta para os chamados casos difíceis. Ou seja, o autor tem o objetivo de negar a tese segundo a qual, em fase de casos no qual inexiste a incidência de uma regra expressa, o magistrado estaria autorizado por meio de um poder discricionário criar um direito novo e aplicá-lo retroativamente ao caso.

Dworkin (2001:175) inicia trazendo um problema exemplar:

Tom e Tim assinaram um contrato no domingo, de modo que, em razão de uma lei que invalida os contratos sacrílegos, Tom processa Tim para fazer falar o pactuado, mas encontra um argumento contrário no sentido da invalidade do negócio jurídico.

Se for compreendido que os conceitos como contrato válido, responsabilidade civil e crime são válidos em determinadas situações, percebe-se que os juízes têm o dever, pelo menos prima face, de decidir as demandas. Esses conceitos serão nomeados por Dworkin como dispositivos e tais conceitos levam a tese da bivalência,

Isto é, que em todos os casos, ou a asserção positiva, de que o caso enquadra-se num conceito positivo, ou a asserção oposta, de que não se enquadra, deve ser verdadeira mesmo quando é controvertido qual delas é verdadeira (DWORKIN, 2001:176).

Tal ambigüidade sobre a questão de direito subjacente ao caso, contudo, não é capaz de excluir a possibilidade de uma resposta correto, como quer afirmar a tese positivista, que negam que a tese da bivalência seja válida para conceitos dispositivos importantes.

A primeira tese irá se apoiar no entendimento segundo o qual a conduta lingüística superficial dos juristas é enganosa, sugerindo a inexistência de um espaço lógico entre uma proposição que afirma um contrato como válido e outra que afirma não o ser, de modo a não admitir que ambas possam ser falsas. Mas em cada caso ambas as proposições podem sim serem falsas, que com isso esgotar um espaço lógico, pois haveria uma terceira possibilidade de proposição independente, que no caso do contrato de Tom e Tim, veria o contrato não como válido ou inválido, mas como não-coativo.

Já a segunda versão da tese que nega a possibilidade de uma resposta correta não supõe a existência de um espaço lógico entre as proposições sobre a validade ou invalidade de um contrato, por exemplo. Ela supõe que os conceitos dispositivos são imprecisos, tal e qual como um conceito como "meia-idade" (DWORKIN, 2001:178). Uma outra variante dessa segunda tese, dirá que não é a imprecisão o ponto, mas subordinam a validade da assertiva a uma questão de prova.

Dworkin, assim colocará a questão:

Podemos formular mais formalmente a diferença entre a primeira e a segunda versão da tese de nenhuma resposta correta. Definamos (~p) como a negação lógica de (p), de modo que se (p) é falso, (~p) é verdadeiro, e se (~p) é falso, (p) é verdadeiro. Representemos a proposição de que o contrato de Tom é válido como "p" e a proposição de que seu contrato não é válido como "não-p". A tese da bivalência supõe que a questão sobre o contrato de Tom deve ter uma resposta certa, mesmo que não tenhamos certeza de qual é, porque (não-p) é idêntico a (~p) e ou (p) é verdadeiro ou (~p) é verdadeiro, pois ((p) ou (~p)) é necessariamente verdadeiro. Ambas as versões da tese de nenhuma resposta correta concordam que isso é um erro, mas discordam sobre que tipo de erro é. A primeira versão argumenta que (não-p) não é idêntico a (~p); (não-p) deveria ser representado como uma proposição (r) que não seja a negação lógica de (p). (Não pretendo, com a escolha de "r" nessa representação, sugerir que a primeira versão deve sustentar que (não-p) não está estruturado, mas apenas que não é a negação de (p)). Sem dúvida, ((p) ou (r)) não é necessariamente verdadeiro; não admite a possibilidade de (q), que não é nem (p) nem (r), mas outra coisa intermediária. A segunda versão, por outro lado, não nega que (não-p) seja idêntico a (~p); em vez disso, sustenta que em alguns casos nem (p) nem (~p) são verdadeiros, isto é, que a bivalência não é válida (DWORKIN, 2001:179).

Como conseqüência, a validade da primeira versão acabará por admitir a existência de um poder discricionário por parte dos magistrados. Por outro lado, se considerar como válida a segunda tese, mantém-se a possibilidade da discricionariedade, já não havendo disposição legal, o juiz se mostra livre para agir por conta própria. Assim, necessária se mostra a análise mais detalhada de ambas as teses.


A primeira versão.

A partir de reflexões sobre o fato de que um juiz tem o dever de decidir em um sentido específico, poder-se-ia argumentar que sobre a existência de um poder discricionário, que se mostraria mais como uma permissão para decidir em um ou em outro sentido. Assim, no caso do contrato de Tom e de Tim, o juiz pode afirmar que o contrato não é valido nem inválido, mas sim que ele não é coativo, ficando a cargo de ele resolver, utilizando-se de suas convicções, sobre a aplicação ou não do contrato. De fato é isso que vem sendo sustentado por aqueles que defendem a primeira tese.

Como Dworkin (2001:181) observa, trata-se de uma afirmação semântica sobre o significado de conceitos jurídicos. Mas na prática lingüística, os juristas parecem realmente tratas conceitos como válido e inválido ou responsável e não-responsável como negações recíprocas. Assim, corre-se o risco de se esbarrar ao defender a primeira tese em um argumento falacioso, já que não decorre do fato de que o conceito de dever ter três valores e, logo, que os conceitos usados para definir ocasiões de dever devam ter igualmente os três valores.

Se partirmos do exemplo do tênis a situação adquire uma nova luz. Sabe-se que os árbitros têm o dever de marcar falta a todo saque que sai inteiramente da quadra; e o dever de não marcar essa falta se ele não sai. Assim, há um espaço entre proposições que afirmem que um árbitro tem o dever de marcar a falta, mas isso está longe de admitir a existência de um espaço entre as proposições de que o saque caiu inteiramente dentro ou fora da quadra. Dito de outro modo:

Os conceitos dispositivos são usados para descrever as ocasiões do dever oficial, mas não decorre daí que esses conceitos devam eles próprios, ter a mesma estrutura que o conceito de dever (DWORKIN, 2001:182).

Um defensor da primeira tese, então, pode apresentar a seguinte objeção:

Dirá, corretamente, que o conceito de contrato válido não descreve simplesmente as circunstâncias factuais sob as quais os juízes têm certo dever. Podemos facilmente imaginar as regras do tênis sendo mudadas, de modo que, por exemplo, o juiz tenha o dever de marcar falta se a bola cair na linha da quadra. Mas não podemos imaginar uma mudança nas regras do Direito, de modo que os juízes não tenham mais nem sequer o dever prima facie de aplicar um contrato válido; em todo caso, se tal mudança ocorresse, certamente diríamos que o próprio conceito de contrato teria mudado radicalmente (DWORKIN, 2001:182).

Do ponto de vista de uma teoria semântica, o argumento seria impecável, mais carece de validade para uma teoria do direito, já que devem sim existir diferenças de significado entre uma proposição que afirma um contrato como válido e outra que afirma que os magistrados têm o dever de impor promessas constitutivas desses contratos, pois é normal que se considera que o primeiro ponto oferece um argumento favorável ao segundo, e não uma mera repetição. Logo, a teoria semântica, que meramente traduz enunciados sobre contratos em enunciados sobre deveres públicos, obscurece, portanto, o papel importante e distintivo dos conceitos dispositivos na argumentação jurídica. Esses conceitos propiciam um tipo especial de ponte entre certos tipos de eventos e as afirmações conclusivas sobre direitos e deveres válidos, quando provado que esses eventos ocorreram. Ambos designam premissas pra afirmações conclusivas e insistem em que, se as premissas que designam não ocorrerem, é válida a afirmação conclusiva oposta, não apenas a negação da primeira. A necessidade de conceitos que tenham essa função na argumentação jurídica surge porque os conceitos de direito e dever em que se inserem as afirmações conclusivas são estruturados, isto é, porque há um espaço entre as afirmações conclusivas opostas. Sua função é negar que o espaço assim oferecido passa ser explorado pela rejeição das duas afirmações opostas. Os conceitos dispositivos só podem preencher essa função porque a primeira versão da tese de nenhuma resposta correta é falsa; se houvesse espaço entre as proposições de que um contrato é e não é válido, esse conceito não poderia preencher o espaço oferecido pelos conceitos de direito e dever (DWORKIN, 2001:184).

É por isso que a analogia correta se dá não pela relação entre conceitos jurídicos e eventos factuais de um jogo, mas entre esses conceitos e conceitos dispositivos que cumprem a mesma função no jogo. Destarte, um saque dentro ou fora da quadra pode ser considerado como sendo um conceito dispositivo no tênis e, com isso, esse conceito se liga ao dever oficial dos árbitros de maneira que preenche o espaço deixado em aberto pela estruturas das afirmações de um dever.

Outro argumento em favor da primeira tese é o seguinte: ao se afirmar que "o contrato de tom é válido", estar-se-ia abreviando um enunciado mais longo no sentido de que "a lei prevê que o contrato de Tom é válido". Assim também em sentido contrário. Mas ambos os enunciados podem ser falsos, já que a lei pode ser omissa, deixando de prever nada em sentido algum. Desse modo, os dois enunciados mais breves seriam igualmente falsos. Só que o que significa essa proposição? Seria redundante dizer "juridicamente, o contrato de tom é válido", mas de maneira alguma refletem a falsidade do fato que alega que "lei prevê que o contrato de Tom é válido" e sua respectiva negação.

Logo, Dworkin (2001:185-186) lembra que tal argumento transforma em pressuposto que justamente ele deveria provar. Tal argumento personifica o sentido de "lei", ao considerar que uma pessoa possa prever (p), (~p) ou nenhuma das duas. Só a lei não é uma pessoa!

Uma proposta de teoria semântica mais ambiciosa, então, poderia sustentar que quando se afirma que "a lei prevê que o contrato de Tom é válido", estar-se-ia dizendo que "as autoridades competentes aprovaram alguma regra segundo a qual contratos como os de tom devem ser cumpridos". Mas essa correlação não é evidente por si mesma. Do mesmo modo a assertiva "o contrato de Tom não é válido" não significa que alguma autoridade possa ter aprovado uma regra determinando que tais contratos, como os de Tom, fossem inválidos. Isso porque a afirmação de invalidade do contrato de tom, justamente, nega a assertiva "o contrato de Tom é válido". Mais uma vez, tal argumentação transforma o que se busca demonstrar em um pressuposto, caindo em uma petição de princípios.

Outro argumento, muito influente, então, seria o que Dworkin (2001: 187) denomina de argumento realista:

Ele pode dizer que minha análise da função dos conceitos dispositivos deve estar errada porque, se estivesse certa, a prática jurídica seria grosseiramente irrealista no seguinte sentido: se examinarmos as condições efetivas que a lei prevê para afirmar a validade de contratos, percebemos que, na verdade, às vezes não há nenhuma resposta certa para a questão de se esses requisitos são satisfeitos em um caso particular. Como não pode haver nenhuma resposta certa para a questão de se um acordo é sacrílego ou não, por exemplo, não pode haver nenhuma resposta correta para a questão de se o contrato de Tom é válido ou inválido, que os juristas pensem que há uma resposta correta, quer não. Esse tipo de imprecisão ocorre com tal freqüência que seria irrealista e, na verdade, impertinente os juristas insistirem em que, não obstante, não existe nenhum espaço lógico entre o conceito de um contrato válido e o de um contrato inválido. Isto é, a freqüência de tais casos oferece um forte motivo para ajustar a semântica jurídica de modo a abrangê-los, e deveríamos esperar, portanto, que os juristas já tivessem feito esse ajuste. Eles podem não ter desenvolvido efetivamente nomes específicos para cada uma das terceiras categorias e desejem ocultá-las do público em geral – mas, não obstante, têm de reconhecer tais casos como distintos.

Esse argumento, não é uma defesa independente da primeira tese, pois pressupõe a demonstração da segunda versão da tese sobre a impossibilidade de uma resposta correta. De modo que ele pode ser ignorado, caso também se fracasse a defesa da segunda tese.


A SEGUNDA VERSÃO.

Três são os argumentos que dão sustentação a essa segunda versão da tese sobre a impossibilidade de existência de uma resposta correta para os assim chamados casos difíceis:

A primeira supõe que a inevitável imprecisão ou textura aberta da linguagem jurídica às vezes torna impossível dizer que uma proposição de Direito particular é verdadeira ou falsa. A segunda supõe que as proposições de Direito, como a proposição de que o contrato de Tom é válido, têm uma estrutura oculta, explicitada pelo positivismo jurídico, que explica como pode ser verdadeiro que nem o contrato de Tom seja válido nem que seu contrato não seja válido. A terceira fixa-se no fato de que, às vezes, como em nosso exemplo, uma proposição de Direito é contestada de tal maneira que nenhum outro lado tem qualquer chance de provar que o outro está errado; esse argumento supõe que as proposições de Direito inerentemente controvertidas não podem ser nem verdadeiras nem falsas (DWORKIN, 2001:188).

O argumento da imprecisão.

Parece ser bem difundida a idéia de que a imprecisão da linguagem representaria argumento suficiente para justifica a impossibilidade de uma resposta correta. Contudo, Dworkin busca mostrar que essa popularidade se assenta sob uma incapacidade de distinguir entre o fato e as conseqüências da imprecisão na linguagem jurídica (DWORKIN, 2001:188).

Tomando por base a imprecisão da palavra "sacrílego" como critério para definir se o contrato de Tom é ou não válido, confunde-se o caso de se usar um conceito que admite concepções distintas, com o fato do legislador fazer uso de um termo que seria impreciso. Mas tal ponto, não é considerado por Dworkin (2001:189) como relevante o suficiente, de modo que supõe que a palavra seja imprecisa e que a lei é, por isso mesmo, imprecisa também.

Mas o argumento sobre a imprecisão tem um erro adicional. Ele já que toma como pressuposto o fato de que há um efeito para o direito uma lei ser aprovada trazendo palavras em seu texto que contenha um significado impressivo, de modo que, conseqüentemente produz para mesma lei certa indeterminação.

Mas essa suposição está claramente errada, pois os critérios de um jurista para estabelecer o impacto de uma lei sobre o Direito podem incluir cânones de interpretação ou explicação legal que determinam que força se deve considerar que uma palavra imprecisa tem numa ocasião particular, ou, pelo menos, fazer sua força depender de questões adicionais, que, em princípio, têm uma resposta certa. Esses critérios podem referir-se a questões de intenção ou a outros fatores psicológicos. Os juristas são livres, por exemplo, para argumentar que a extensão de "sacrílego, nessa ocasião de uso, deve ser restrita a casos que pelo menos uma maioria dos que votaram a favor da lei tinham em mente, ou que teriam desejado aceitar se lhes tivessem sido proposto. Mas os critérios não podem basear-se em fatos psicológicos (DWORKIN, 2001:189).

Neste caso, duas posições são demonstradas de modo que: 1) podemos ler essa pergunta como a busca pela interpretação que compreendesse o melhor conjunto de argumentos de princípios e de políticas que justificassem a lei quando foi votada, como faz Dworkin; ou 2) adotando uma atitude conservadora, interpretar como uma mudança no status quo ante restrita ao âmbito justificado pelo âmago indisputável da linguagem empregada pelos legisladores.

Contudo, mesmo tomando por base a interpretação mais conservadora, tem-se que ela não garante a indeterminação das proposições jurídicas. Segue-se então, mais um argumento a favor da segunda tese:

(A) Se a proposição de que um contrato particular é sacrílego não é verdadeira, então o Direito deve tratá-la como falsa, de modo que todas as proposições de Direito que seriam verdadeiras se ela fosse falsa são verdadeiras. Pode-se retrucar que, assim como pode ser indeterminado se um contrato é sacrílego, também pode ser indeterminado se a proposição de que é sacrílego é verdadeira. Afinal, alguém que busque aplicar (A) na prática pode descobrir que está genuinamente confuso quanto a determinar se (A) exige que ele trate um contrato particularmente como sacrílego ou como não sacrílego. Suponha que todos os contratos estejam ordenamos num espectro que vai dos claramente sacrílegos aos claramente não sacrílegos. Haverá um grupo, numa das extremidades, para o qual a proposição "Este contrato é sacrílego"será verdadeira, e outro grupo, perto do meio, para o qual a proposição não será nem verdadeira nem falsa (DWORKIN, 2001:190).

A partir desse raciocínio, percebe-se que, entre as extremidades, aparece um grupo formado por contratos no qual não fica claro se é verdadeira ou nem verdadeira nem falsa a proposição. No máximo, percebe-se que (A) consegue reduzir a indeterminação, mas nunca eliminá-la.

Tal objeção, ainda se mostra incapaz de refutar a tese dworkiana. Para aclarar a sua posição, Dworkin (2001:191) lança mão do seguinte exemplo: suponhamos que uma pessoa, seguidora da segunda tese sobre a inexistência de uma resposta correta, argumente que se um termo é impreciso, então existirão sentenças que contenham esse termo e que sejam verdadeiras e outras que sejam falsas, podendo, ainda, haver sentenças que não são nem verdadeiras nem falsas. Aqui uma diferença do que foi visto na primeira tese, pois nessa tanto uma sentença que utilize o termo impreciso para afirmá-lo ou negá-lo acabará por ser falsa.

Se articulado que a indeterminação terá fim com uso de um princípio legal que exija da sentença "x é ø" – onde ø é o termo impreciso -, se não for verdadeiras, seja tratada como falsa, acaba por abrir margem para que essa argumentação seja refutada. Mas, com isso, tal refutação cairá em um circulo vicioso:

Ora, o presente objetor (R) refuta que, embora isso possa reduzir a indeterminação, não pode eliminá-la; R sobre em um nível de linguagem para afirmar que, se "ø" é impreciso, então haverá casos em que "x é ø’ é verdadeiro" não será verdadeiro nem falso. Se tento fazer frente a R modificando o princípio legal que recomendei para determinar que se "x é ø’ é verdadeiro" não é verdadeiro, então, deve ser tratado como falso, não consegui nada. R subir mais um nível de linguagem e eu ficarei em sua perseguição para sempre (DWORKIN, 2001:191).

Mas olhar atentamente, pode-se ver que R tem aparentemente apenas três valores de verdade – ou a assertiva é verdadeira, falsa ou nenhuma das duas. Contudo, a conclusão de que a assertiva é nem verdadeira nem falsa, acaba por equivaler a afirma que ela é falsa:

Se "x é ø" é verdadeiro, então "x é ø’ é verdadeiro" é verdadeiro; mas se "x é ø"é falso ou nem verdadeiro nem falso, então "x é ø’ é verdadeiro"é falso. Em nenhum dos trás casos possíveis "‘x é ø’ é verdadeiro" não é nem verdadeiro nem falso. Assim, R parece ser vítima da própria formulação que V faz de seu argumento (DWORKIN, 2001:191).

Logo, refuta-se a tese que veio sendo discutida até o presente momento, podendo ser afirmada uma possibilidade de se buscar uma resposta correta em casos difíceis.

Voltando, então, ao problema do contrato de Tom, voltamos a colocar a questão sobre se o contrato é válido, tendo ele o direito ao cumprimento, ou não é válido, não podendo obrigar a ser cumprido. Logo, o que está em discussão é validade do contrato, não a imprecisão do termo "sacrilégio" (DWORKIN, 2001:193-194).

O argumento do positivismo.

O positivismo jurídico, a pesar de se apresentar de várias configurações, quer como na teoria de Austin – na qual a lei é fruto de um ato de autoridade (soberano) com poder político efetivo – quer em sua versão mais bem desenvolvida em Hart – no qual o direito é produto de reconhecimento social que cria as regras (podendo ser divididas em regras primárias e secundárias) – a idéia de que a lei existe em virtude de uma decisão humana permanece inalterada.

Podemos, portanto, enunciar a estrutura do positivismo, como tipo de teoria jurídica, desta maneira: se "p"representa uma proposição de direito, e "L(p)"expressa o fato de que alguém ou algum grupo atuou de maneira que torna (p) verdadeiro, então o positivismo sustenta que (p) não pode ser verdadeiro a menos que L(p) seja verdadeiro (DWORKIN, 2001:194).

Contudo, é apenas aparente o fato de que o positivismo estaria dando suporte a segunda tese, pois nenhuma das formas do positivismo realmente sustenta tal tese. Partindo dessa afirmação, Dworkin (2001:195) procurará demonstrar que tais teses se distinguem pelos diferentes valores atribuídos a "L" – ou seja, ao fato do poder soberano ter emitido uma determinada ordem -, bem como as diferentes relações entre (p) e L(p) – isto é, entre a proposição de direito e o fato de alguém ou grupo agir de uma maneira a tornar a proposição verdadeira.

Uma vertente, então, como a do positivismo semântico afirmará que se (p) é igual a L(p), estar-se-ia afirmando uma equivalência nas assertivas: "o contrato de Tom é válido" e "o poder soberano ordenou que contratos como o de Tom sejam cumpridos". O que justamente não é o que diz a segunda tese em exame. Para fazer justa a essa tese,

positivismo semântico, portanto, tem de negar que "O contrato de tom não é válido" seja a negação de "O contrato de Tom é válido"; só tem direito de negar isso, é claro, se já tiver sido demonstrado que o comportamento lingüístico superficial dos juristas é enganosos no sentido que a primeira versão da tese afirma (DWORKIN, 2001:196).

Outra forma de positivismo como o positivismo de equivalência funcional de verdade reconhece que a primeira versão da tese como falsa e, portanto, oferece um argumento contra, não a favor da segunda versão. Isso porque afirma se a proposição de direito equivale à vontade do soberano, então decorreria com naturalidade que a negação da proposição equivalesse a negação da manifestação de vontade desse mesmo soberano. Se esse último caso fosse verdadeiro, a proposição não seria nem verdadeira nem falsa. Contudo tal conclusão é fruto de uma leitura negligente, pois a afirmação da vontade do soberano equivale à condição de verdade da proposição, bem como, sua afirmação em sentido contrário pode ser interpretada como condição de falsidade. Contudo, decorre também que a não manifestação do soberano é equivalente a sua manifestação em sentido negativo. Em outras palavras, dizer que os legisladores ordenam que o contrato de tom não seja aplicado equivale a dizer que os legisladores não mandaram que o contrato de Tom seja aplicado (DWORKIN, 2001:197).

Um novo argumento de acrescido, então, pois para que o positivismo seja eficaz em sua tese, ele deve encontrar alguma forma que entenda como especial a ligação entre proposições, de modo que uma proposição de direito seja verdadeira se,e apenas se, uma proposição sobre atos legislativos também o for, mas não seja falsa quando essa segunda proposição for.

Como reforço a essa argumentação, um positivista poderia fazer uso de uma analogia como a elaborada por Dworkin (2001:199): pode-se supor que um grupo de estudiosos em Dickens pretenda considerar a personagem David Copperfield como alguém real. Deste modo pode-se concluir que:

1.Qualquer proposição sobre David deve ser afirmada como "verdadeira"se Dickens a disse, ou se disse alguma outra coisa que teria sido incoerente caso Dickens a negasse;

2.Qualquer proposição pode ser negada como "falsa"se Dickens a negou, ou se disse outra coisa que teria sido incoerente caso Dickens a dissesse.

Visível, então, que a primeira tese que nega a impossibilidade de uma resposta correta para casos difíceis não se aplica aqui. Isso é fácil de entender, pois, por exemplo, se David esteve na Salem Houve, então se torna falsa a afirmação que ele não esteve e vice-versa. Inexiste a possibilidade de afirmar ambas as proposições como igualmente falsas.

Logo, somente pode ser pensada essa argumentação para a segunda tese, já que esta pressupõe inúmeras outras proposições não ditas pelo autor, como por exemplo se David teve ou não um caso com Steerforth, uma vez que Dickens, em momento algum de sua obra o afirma ou o nega, logo tanto a afirmação ou a negação de tal proposição não se mostram incompatíveis com o que foi dito sobre a personagem.

Assim, os participantes não podem afirmar nem negar a proposição, não porque carecem de informação suficiente, mas porque têm informação suficiente para ter certeza de que, pelas suas regras, a proposição não é verdadeira nem falsa (DWORKIN, 2001:200).

Nesta forma de argumentação positivista, tem-se de fato a afirmação de uma ligação especial entre proposições de direito e proposições sobre atos legislativos, bem como a afirmação da segunda tese, já que demonstra como uma dada proposição pode não ser compreendida como verdadeira ou falsa. Isso não em razão de uma imprecisão ou da textura aberta da linguagem, mas devido ao fato de que as regras básicas têm essa conseqüência. Mas com tal argumentação, escapa-se do universo do positivismo ortodoxo, que afirma a ligação conceitual entre direito e os atos particulares constituintes de uma lei.

Ele deve contentar-se em dizer (como acontece) que os cidadãos e funcionários de uma determinada jurisdição seguem regras básicas sobre a afirmação e a negação de proposições jurídicas de tal modo que nenhuma proposição pode ser afirmada, a menos que um poder soberano tenha feito o comando adequado, ou negada, a menos que um pode soberano tenha feto o comando contrário, e que, por essa razão, há proposições de Direito que não podem ser afirmadas nem negadas. Todavia, sua afirmação não é a de que devem existir, em qualquer sistema jurídico, questões de Direito que por esse motivo não têm nenhuma resposta certa, mas apenas, de que, por esse motivo, tais questões existem (DWORKIN, 2001:201).

Com isso, abre-se a possibilidade que se não há respostas corretas nesse sistema específico, possa haver respostas certas em outros sistemas, ainda que nenhum comando legislativo tenha ocorrido.

Retomando a analogia com o exercício literário, reduziriam em três momentos as proposições que não podem nem verdadeiras nem falsas. Primeiramente, com o uso de proposições adicionais sobre David que pudessem ser afirmadas como verdadeiras (ou mesmo negadas por serem falsas) se fosse realmente provável (ou então improvável) a partir de uma suposta pessoa real com as qualidades próximas as de David.

Num outro momento, menos questões sem respostas restariam, somente questões que ninguém desejaria fazer de tão aborrecidas. Para tanto, as proposições adicionais sobre David, que deveriam oscilar entre o verdadeiro ou o falso, estariam ajustadas com relação às proposições já aceitas, servindo a explicar mais satisfatoriamente porque David era o que era. Transpondo tal idéia para o direito, os participantes poderiam afirmar ou negar proposições que se ajustam seja melhor seja pior a uma teoria política que melhor justifica as proposições de Direito já estabelecidas (DWORKIN, 2001:203).

O argumento da controvérsia.

Fica ainda por ser demonstrado um argumento que para Dworkin é o mais influente para a tese da inexistência de uma resposta correta e que será denominado de tese da demonstrabilidade.

Essa tese afirma que, se não se pode demonstrar que uma posposição é verdadeira, depôs que todos os fatos concretos eu possam ser relevantes para sua veracidade sejam conhecidos ou estipulados, então ela não pode ser verdadeira. Com "fatos concretos" quero designar fatos físicos e fatos relativos ao comportamento (incluindo os pensamentos e atitudes) das pessoas. Com "demonstrar"quero dizer fundamentar com argumentos de tal tipo que qualquer pessoa que compreenda a linguagem em que foi formulada a proposição deva assentir à sua veracidade ou ser condenada por irracionalidade (DWORKIN, 2001:204).

Se tal tese é válida, então existem mesmo questões que não podem receber uma resposta correta, porque não podem ser verdadeiras nem as proposições que afirmem algum conceito dispositivo como válido, nem as proposições que o afirmem como inválido. Contudo, pode-se observar que tal tese se pauta por afirmar uma forma estrita de empirismo, pois condiciona a verdade da proposição a algum fato que a faça verdadeira, de modo que se não existir nenhum fato no mundo, a não ser fatos concretos, a presente tese decorre de uma concepção metafísica.

Somente seria possível acreditar racionalmente que uma proposição é verdadeira, mesmo que sua veracidade não seja demonstrada depois de conhecidos ou estipulados todos os fatos concretos, se houvesse alguma outra coisa no mundo em virtude da qual ela pudesse ser verdadeira. Mas se não há mais nada, não se pode acreditar racionalmente que ela é verdadeira; a impossibilidade dos fatos concretos em fazê-la verdadeira teriam esgotado qualquer esperança de fazê-la verdadeira (DWORKIN, 2001:205).

O reconhecimento, portanto, de existência de outros fatores além dos fatos concretos que possam tornar verdadeiras as proposições jurídicas leva a derrubada da tese da demonstrabilidade. Um exemplo disso são os fatos morais. Estes podem afirmar a escravidão como injusta independentemente do que as pessoas pensem ou da existência de uma convenção sobre o tema.

No campo da literatura, equivaleria afirmar um conceito de coerência narrativa que tornam a proposição de David teve uma relação sexual com Steerforth como uma explicação mais satisfatória para o que a personagem pensou ou fez frente a proposição de que ele não teve. Assim, não se trata de um fato concreto, já que ninguém é capaz de ter em mente a história que Dickens tinha em mente, nem o caráter que ele atribuiria a David. Também não basta fornecer argumentos de probabilidade comuns, pautados nas histórias de pessoas reais, mesmo que estes fossem suficientes para convencer qualquer pessoa racional a aceitar ou rejeitar uma dada hipótese.

Suponhamos que o exercício prossiga com o relativo sucesso. Os participantes muitas vezes e, mesmo quando discordam, compreendem suficientemente bem os argumentos de ambos os lados para classificar cada conjunto, por exemplo, numa ordem aproximada de plausibilidade. Suponha agora que um filósofo empirista examina os procedimentos do grupo e diz que não existem fatos de coerência narrativa ou que, de qualquer modo, não existem tais fatos quando homens razoáveis podem discordar quanto ao que eles são. Acrescenta que ninguém, portanto, pode ter razão para pensar, em resposta aos termos do exercício, que o argumento de que David teve um caso com Steerforth é mais forte que o argumento de que ele não teve. Porque deveriam ser persuadidos pelo que ele diz? [...] Os participantes realmente têm razões para preferir uma proposição à outra, ou pelo menos acham que têm, e, mesmo quando discordam, cada um deles pensa que pode distinguir casos em que seus oponentes têm razões genuínas a seu lado de casos em que eles não têm. Se todos cometerem um erro, e nenhuma razão existe, é difícil entender porque pensam que podem fazê-lo e como seu exercício chegou a ter tal êxito (DWORKIN, 2001:207).

O sucesso então de tal exercício comprova que existem fatos, tal como os fatos de coerência narrativa, sobre os quais os participantes debatem. Mas tal filósofo empirista ainda pode lançar um novo argumento. Pode demonstrar que o fato de um participante sustentar uma opinião particular se deve mais em razão de sua personalidade, preferência e história pessoal, do que em razão de um fato objetivo ao qual esteja reagindo (DWORKIN, 2001:208). Mas como tal tese pode ser demonstrada? Recair-se-ia ao absurdo de imaginar uma máquina capaz de fazer previsões sobre a opinião de um participante a partir de informações empíricas, como por exemplo, a química sanguínea do participante.

Fazendo o caminho de volta ao direito, tem-se que uma proposição jurídica é verdadeira se fornece a melhor justificação para o conjunto de proposições jurídicas tidas como estabelecidas. Desse modo fornece um melhor argumento a favor dessa proposição que a tese contrária, que toma como inválido, por exemplo, o contrato de Tom. Mas a proposição é falsa se fornecer um argumento melhor a favor dessa proposição contrária. Assim, o raciocínio jurídico também fará uso de um conceito próximo ao de coerência normativa, porém mais complexo.

Argumento que há duas dimensões ao longo das quais se deve julgar se uma teoria fornece a melhor justificação dos dados jurídicos disponíveis: o dimensão da adequação e a dimensão da moralidade política. A dimensão da adequação supõe que uma teoria política é por tanto uma justificativa melhor que outra, se, grosso modo, alguém que a sustentasse pudesse, a serviço dela, aplicar mais daquilo que está estabelecido do que alguém que sustentasse a outra. Duas teorias diferentes podem fornecer justificativas igualmente boas, segundo essa dimensão, em sistemas jurídicos imaturos, com poucas regras estabelecidas, ou em sistemas jurídicos que tratam apenas de um âmbito limitado da conduta de seus participantes. Mas, em um sistema moderno, desenvolvido e complexo, a probabilidade antecedente desse tipo de empate é muito pequena. [...] Será raro que muitos juristas concordem que nenhuma [teoria] fornece uma adequação melhor que a outra (DWORKIN, 2001:213).

Já a segunda dimensão, chamada de dimensão da moralidade política, para do pressuposto que

se duas justificativas oferecem uma adequação igualmente aos dados jurídicos, uma delas, não obstante, oferece uma justificativa melhor que a outra se for superior enquanto teoria política ou moral; isto é, se apreende melhor os direitos que as pessoas realmente têm. A disponibilidade dessa segunda dimensão torna ainda mais improvável que algum caso específico não tenha nenhuma resposta correta. Mas a força da segunda dimensão [...] será objeto de disputa, porque juristas que sustentam tipos diferentes de teoria moral irão avaliá-las de maneira diferente (DWORKIN, 2001:213-214).

A refutação, então, da tese de que existe uma resposta correta para casos difíceis deve vir de um argumento filosófico, de modo a contestar que em um sistema jurídico complexo e abrangente é improvável que duas teses divirjam a ponto de exigir respostas diferentes. Além disso, deve fornecer argumentos que justifiquem certo ceticismo moral, para além do qual se mostre impossível, com base na moralidade política, preferir uma das teorias. Dworkin (2001:216), então, se mostra aberto a este novo nível do debate, uma vez que coloca que tais objeções ainda não foram formuladas por aqueles que negam a possibilidade de uma resposta correta.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: Fundamentos de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2001.

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